Teus Olhos S.A.

Muitas pessoas têm a infelicidade de perder a visão com o tempo, seja por alguma doença degenerativa, seja por uma fatalidade. E o maior sonho dessas pessoas, que um dia já viram a beleza, é voltar a vê-las, se não fisicamente, ao menos de forma imaginária. Era o que dizia a pesquisa de mercado que encomendei, pois minha ideia sempre havia sido abrir uma empresa que pudesse dar àqueles pobres condenados à escuridão o que eles mais desejavam. O resultado da pesquisa corroborou minha decisão.

Teus Olhos S.A. foi o nome escolhido, e a sede seria na grande metrópole, onde mora muita gente e, em consequência, muito mais seres desejosos de enxergar de novo. O serviço prestado era interessante: de acordo com o que o cliente desejava ‘ver’, mobilizávamos a empresa no sentido de realizar seu sonho. Nós o levávamos ao local escolhido e um de nossos funcionários, normalmente alguém com grande capacidade de descrição e uma certa verve poética, tratava de descrever minuciosamente o visual do lugar que o cliente amava, enquanto ele ouvia os ruídos e sentia os aromas do local amado.

Funcionou tão bem que em pouco tempo tínhamos uma invejável carteira de clientes com problemas visuais e muitos sonhos. Porém na metrópole não havia muita coisa que eles desejassem rever; seus pedidos sempre se localizavam a centenas de quilômetros de distância... eram praias desertas, montanhas íngremes, natureza intocada, cidades turísticas; enfim, lugares distantes que um dia causaram impressões inesquecíveis a aqueles pobres desafortunados...

A prestação de serviços começou a custar muito caro e os clientes abonados rareavam, o que causou uma queda na demanda. Foi quando contratamos um consultor que nos disse uma coisa óbvia: ‘seus clientes não enxergam, então o que conta mesmo é a descrição. Treinem seu pessoal para que a embelezem muito e podem levar a clientela para locais mais próximos e baratos, desde que tenham, obviamente, a mesma característica: praia é praia, montanha é montanha, cidade é cidade.’ Simples assim.

Foi o que fizemos. Mas logo no primeiro contrato após a reengenharia a Teus Olhos S.A. teve muito azar.

A cliente, uma jovem viúva que havia perdido a visão paulatinamente durante anos até a cegueira total, desejava ‘rever’ uma praia deserta onde havia passado sua lua de mel, um santuário ecológico intocado, muito longe de nossa localização. E, com o desconto que oferecemos a ela para que fechasse o negócio conosco, mal poderíamos sair da metrópole – eu diria até mesmo do bairro... Assim, nós a levamos à cidade litorânea mais próxima, um reduto de água poluída e areias infestadas, mas, de acordo com o consultor, praia era praia, tinha barulho de mar e cheiro de maresia. Acreditávamos que a descrição faria o resto.

Ledo engano... ao chegarmos à beira da praia, a mulher, que não enxergava mas tinha um faro assustador, logo sentiu o cheiro do esgoto que era liberado nas águas. Ao dar alguns passos na areia, para nosso azar pisou num dos muitos resíduos caninos espalhados por ali, substância impensável num paraíso ecológico. E, com cara de poucos amigos, foi caminhando com sua bengala até pisar na água – pois não é que logo na primeira onda uma garrafa gigante de coca cola vazia bateu com força em sua perna?

Foi o primeiro processo que sofremos; despedimos o guia daquela viagem, acreditando que ele não soube romancear devidamente o local, já que havia sido treinado para isso. Porém esta demissão causou a revolta dos outros guias, que solidariamente o acompanharam pedindo demissão em massa.

Na pressa e com outra viagem agendada – desta vez para uma reserva ecológica na montanha – contratamos um jovem muito doce e solícito, mas sem que tivéssemos tido tempo hábil de treiná-lo devidamente. E lá foi ele levar o cliente, um ex esportista que agora não mais enxergava, ao local onde ele costumava fazer escaladas. Ou melhor, a um outro, com características semelhantes: altitude, cheiro de mato, etc etc. Montanha era montanha, segundo o consultor.

Não era exatamente uma reserva ecológica, mas era bem próximo da cidade, com uma bela área verde e um morro respeitável, de onde, em virtude da altura, as muitas emissoras de TV instalaram antenas. Foi a primeira coisa que o guia relatou ao cliente. Ele ficou sério mas o guia, sorridente e animado, continuou a descrever o local: a cidade enfumarada ao longe, a favela já alcançando o pé da encosta, a vegetação que surgia, milagre da natureza, depois do último incêndio criminoso... E, exultante, contou-lhe que há mais de uma semana não havia notícias de corpos sem identificação em suas matas, pois a instalação de um posto avançado da polícia militar, com guardas fortemente armados, estava coibindo a ação de bandidos.

De fato não sabíamos que este rapaz tão bem intencionado havia feito um juramento no leito de morte de sua mãe, prometendo solenemente que jamais falaria qualquer coisa que não fosse a verdade. E assim aqui estamos, neste tribunal, respondendo a estes processos indenizatórios milionários e enfrentado a solicitação de falência. Uma pena, pois a intenção da Teus Olhos S.A. foi das melhores: levar alegria àqueles que não mais podem ver.

Gostaríamos de, nesta oportunidade, entrar com uma ação contra o Estado, por deixar que a nossa cidade ficasse tão feia a ponto de nossos clientes quererem sempre ir tão longe para vislumbrar belezas... e, principalmente, contra sua equipe econômica, pois graças a esta carga tributária extremamente alta, associada aos preços exorbitantes dos locais turísticos, não podemos mais levá-los viajar a um custo razoável sem termos grandes prejuízos financeiros.

Vamos abrir falência mas mudaremos de ramo: estudamos inaugurar em breve uma consultoria de negócios. Existe muito mercado, haja vista que os consultores que nos orientaram continuam firmes e fortes. Estamos também em negociação com uma empresa japonesa de tecnologia, para importarmos e vendermos detectores de mentira. Pretendemos oferecê-los a todos os clientes da extinta Teus Olhos S.A., para que possam usá-los antes de contratar um serviço. Acho que, desta vez, daremos certo.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Abrindo falência"

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