Uma Realidade Alternativa

1

Haviam livros espalhados por todo o quarto, junto com nossas roupas e algumas latas vazias de cerveja. Em cima da minha escrivaninha, que M. prontamente se apropriou desde que chegou de visita, estava uma garrafa de vinho tinto e uma taça cheia pela metade, ainda marcada com o batom vermelho que estava nos seus lábios no começo da noite.

Ela estava no banho já há algum tempo e eu me mantinha deitado na borda da minha cama pensando se haveria alguma comida na geladeira. Devia passar das quatro da madrugada e não teria onde comprar até que fosse de manhã. Me levantei e fui até a radiola dos anos 80 que eu havia comprado num arroubo de nostalgia. Quase não se encontrava vinis em bom estado de conservação naquele tempo, mas eu gostava da atmosfera que eles criavam. Como eu tinha conseguido comprar alguns de Rock clássico e de MPB dos anos 60 e 70, no fim, eu não me arrependera.

Abri mais uma lata de cerveja e tentei dar um jeito na bagunça. Eu era certamente mais desorganizado do que seria aceitável para a maioria das pessoas, e M. apesar de não me dizer nada, se sentia incomodada. Tomei um gole da bebida e me postei na janela, vendo o horizonte clarear. M. saiu finalmente do banheiro. Seminua, vestindo apenas uma calcinha branca, daqueles tipos bem comportados. Ela havia tomado banho e secado os cabelos, por isso a demora. Trazia-os presos num rabo de cavalo ou algo parecido. Me deu um beijo, tomou um gole da minha cerveja e me sentou-se na cama. Acendeu um cigarro e depois, um pouco envergonhada, perguntou se eu me importava que ela fumasse.

Eu disse-lhe que não. Afinal, ela passaria quatro dias comigo. Seria cruel de minha parte privar-lhe do vício. Por mais que aquilo realmente me incomodasse.

Aproveitei que ela fumava, distraída, e fui ao banheiro. Tomei um banho rápido, ouvindo ela cantarolar junto com a radiola...

Aquilo era mais do que eu queria para mim naqueles tempos. Mais do que eu podia esperar da vida. Há um ano eu nadava num mar de bosta e tédio. Sem dinheiro, sem mulheres, sem inspiração para escrever sequer uma lista de compras de supermercado.

Eu continuava sem dinheiro... ou pelo menos com menos do que eu poderia ter. Mulheres não faltariam se quisesse buscá-las por aí. Eram tantas vagando pelas ruas em querendo sentir algo, que qualquer idiota que soubesse soletrar o próprio nome sem gaguejar poderia arranjar algumas. Mas eu não queria aquele tipo de coisa. Eu queria uma mulher que trouxesse consigo algum significado, algum mistério insolúvel ou que fosse capaz de mudar alguns dos meus pontos de vista. M. tinha tudo aquilo e um pouco mais. Isso somado a dificuldade de vivermos em cidades diferentes, tornava a presença dela em minha casa o ponto alto das últimas semanas.

A presença dela de certa forma dificultava a minha rotina de beber, escrever e dormir. Mas eu tinha produzido muito mais do que fizera no ano anterior desde que a conhecera e começamos a nos corresponder. Aquela mulher realmente tinha mudado algo em mim. Tinha jogado palha seca numa brasa que vinha quase se apagando. Por aquilo eu lhe era imensamente grato.

Voltei ao quarto e ela já dormia. Como fazia muito calor, ela dispensara os lençóis e eu podia ver seu corpo na meia luz da lamparina da minha cabeceira. Seus seios, que eu tanto gostava, subiam e desciam ao ritmo de sua respiração pesada.

Aquela mulher tinha os seios mais belos que eu já vira. Eu poderia passar um dia inteiro só olhando para eles. Eu gostava da extraordinária sensibilidade que ela tinha nessa região. Bastava um toque meu que seus mamilos enrijeciam e assumiam uma cor rósea escura.

Suspirei, e tive vontade de acordá-la para fazer amor novamente. Mas logo desisti. Ela havia enfrentado umas 6 horas de viagem para vir me ver. De ônibus e depois avião. Devia estar exausta...

De repente, ouvi um barulho na janela.

Era meu gato, Bukowski, carregando um pardal na boca.

Eu tinha dado ao animal o nome de um dos meus poetas preferidos.

Por alguma ironia o gato tinha uma personalidade que me lembrava os personagens do falecido. Era o maior dos vira-latas e um clássico Boêmio. Vivia marcado pelas brigas com outros gatos nas ruas. Adorava sentar-se ao pé de mim enquanto eu bebia e escrevia. Varávamos madrugadas e madrugadas e de dia, dormíamos.

Abri a janela e deixei o gato entrar. Largou o bicho morto, provavelmente apanhado no ninho quando se preparava para o primeiro vôo do dia. Afaguei-lhe a cabeça e joguei o passarinho para o lado de fora.

Buk estranhou a presença de M. na casa. Cheirou-lhe todas as coisas, tentou subir na cama para cheirá-la também, mas não o permiti. Deu voltas pelo quarto e quando percebi, tentava dar uma mijada na mala que ela deixara ao lado da escrivaninha. Joguei uma sandália em sua direção e o gato correu e foi se deitar em seu ninho, na cozinha.

Fechei a porta para que ele não viesse ao quarto enquanto eu dormia, e me postei ao lado de M.

Não lembro de ter sonhado aquela noite.

2

Levei M. à praia no dia seguinte.

Ela nadava feliz, pela água quente do mês de novembro. Deslumbrada com o sal, o sol e os peixes ao seu redor. Eu a olhava de uma certa distância, preocupado também com nossas coisas na mesa do bar. Ela logo voltou com um sorriso de orelha a orelha. Me beijou e me abraçou, toda molhada. Uma das coisas que eu mais gostava nela era a energia que me passava. Algo quase adolescente. Uma meninice que me entesava e me deixava frequentemente sem palavras.

Eu deixei que nossos lábios nos separassem e recolhi nossas coisas na mesinha de plástico sobre a areia da praia. Paguei a conta ao vendedor e peguei-a pela mão.

-Vamos dar uma volta, você precisa conhecer alguns outros lugares ainda.

Ela simplesmente me sorriu e concordou com a cabeça.

Andamos de mãos dadas por um quilômetro e pouco. Subimos uma pequena montanha à beira do mar. De lá podíamos ver todos os arredores e o mar azul, se esverdeando a medida que se aproximava da costa.

Então ela me perguntou.

-Você tem alguma outra mulher. Alguém que se importaria por você estar aqui comigo?

A pergunta me pegou um pouco de surpresa, mas eu não tinha por que não lhe responder. Então lhe falei.

- Existe uma ou duas que dificilmente gostariam de saber que estou aqui com você. Ou de saber o que você significa para mim. Mas isso não importa, importa?

Ela, sem se desfazer do sorriso que trazia consigo desde o início manhã, se resumiu a concordar com a cabeça e me beijar longamente em seguida.

- Vamos comer alguma coisa. E não falemos mais sobre esse assunto, ok? Não quero saber de tuas amantes, contanto que não dê de cara com alguma por aí.

Eu tive que concordar com ela, pelo seu jeito tão natural de lidar comigo. Eu não tinha como ir contra aquilo.

Fomos a um restaurante próximo e comemos um ensopado de peixe, com pirão e arroz.

Desde criança eu adorava aquele lugar, aquele tipo de comida, a visão da praia dali de cima do morro. Sempre foi meu programa preferido.

Eu não havia levado nenhuma das minhas amantes, ou mesmo namoradas àquele lugar. O fato de eu ter levado M. devia significar alguma coisa, eu pensava. Eu estava ferrado, provavelmente.

Passamos o resto da tarde naquela praia e depois pegamos a estrada de volta para casa.

M. dormiu boa parte do caminho de volta. Ao chegarmos, fui até a cozinha, abri uma cerveja e botei alguma música para animar o ambiente.

Buk dormia sobre a cama.

M. se despiu e entrou no banheiro, deixando a porta aberta. Enxotei o gato e procurei alguma roupa limpa dentro do armário logo ao lado da cama. O sal sobre minha pele me incomodava e eu fui até o banheiro. M. tomava um banho gelado. Ao me ver, abriu a porta do Box e me convidou para lhe acompanhar. Tirei a roupa e entrei debaixo d’água. Foi um banho rápido, apesar da minha vontade de fazê-lo um pouco mais demorado. Ela saiu logo e se enxugou com minha toalha, cantarolando. Me retive um pouco ali, enquanto ela saia e procurava uma camiseta dentro de sua mala.

Quando saí, ela fumava um cigarro na janela, e o gato ronronava e esfregava a cabeça em seus pés, querendo carinho.

Me deitei e recostei a cabeça no travesseiro, ainda um pouco molhado, como era meu costume. M. largou o cigarro, e sentou-se ao meu lado.

Bebeu um gole de vinho e disse ao meu pé do ouvido.

-Me absorva.

Apagou a luz, montou sobre mim, e descendo a cabeça devagar, beijou-me e tapou completamente minha visão com seus cabelos.

3

M. tinha um gosto esquisito por dramas e tragédias. Ela achava que finais felizes tinham algo de irritante ou de clichê. Eu achava que era por que ela não queria esperar finais felizes para as coisas que fazia na vida. Para mim ela só tinha medo de se decepcionar e de ter expectativas frustradas. Então, mantinha aquela aparência de pessimismo quase conformista. Na verdade ela gostava de parecer imediatista. O agora era tudo para ela. Ou era isso que ela fazia questão de demonstrar. Eu já tinha pensado mais de cem vezes sobre o que fazer com nós dois depois que ela fosse embora. Mas eu não tinha coragem de abordar o assunto com ela. Provavelmente estragaria nosso feriado.

Eu conhecia M. o suficiente para não entrar em assuntos desagradáveis nos momentos errados.

Para mim, no entanto, aquele era um assunto que cedo ou tarde teria que ser abordado.

Eu me sentia confortável com a presença dela em minha vida, mas ambos sabíamos que para fazer daquilo algo permanente ou pelo menos duradouro, um dos dois teria que se mover e abdicar de várias coisas. No momento aquilo era impossível. Se não era impossível, era complicado demais para pensar, sem que houvesse realmente uma vontade de tornar tudo real.

Eu via que M. já colocava nossa história no rol de dramas e tragédias amorosas de sua vida e eu tinha uma opinião diferente. Apesar de ter na minha cabeça que termos uma relação perene naquele momento não era algo pratico e factível, não desconsiderava a possibilidade de que fôssemos fazer isso algum dia.

Talvez fosse diferença entre nossas idades, ou simplesmente as cabeças diferentes.

Esse pensamento tinha vindo a minha cabeça quando M. me deixou sozinho e foi ao mercado comprar cigarros e mais vinho.

Eu já começava a me angustiar com toda aquela possibilidade de drama, quando ouvi o barulho de chaves girando na porta.

Ela largou as compras na cozinha, correu até a cama e me disse de sopetão.

-Quero um dos teus originais. Quero algo de ti, que se brigarmos, eu possa rasgar ou tocar fogo. Algo teu que eu possa destruir.

-Por que isso tudo agora, mulher?

-Eu não tenho nada teu. Quero um pedaço de ti. Algo insubstituível. Algo que se perderes, seria uma perda irreparável. Podes me dar algo assim?

Pensei por alguns segundos, me levantei e peguei um maço de papel dentro de uma gaveta.

Dentro havia um conto que era quase um romance. Eu me debruçara sobre ele por várias semanas, mas nunca consegui concluir a contento. Mesmo assim tinha-lhe um grande apreço. Queria terminar um dia, mas não sabia quando seria possível. Me faltava algo para isso.

Entreguei-lhe o maço e falei.

- É seu. Não tem nome ainda. Não tem fim. Esse é o original. Um dia, talvez, eu o termine. Então trate de não queimá-lo. Disse finalmente.

M. sorriu e folheou o bolo de papéis.

Acho que a primeira página lhe agradou. Pois logo depois de ler, se levantou e disse tirando a camisa.

-É só você não me deixar.

Fizemos amor ali mesmo, sobre as folhas do meu romance inacabado.

4

Eu era só mais uma criatura atordoada pelo amor.

Ia continuar bebendo, escrevendo e dormindo depois que ela fosse embora, mas tudo seria diferente, eu sabia. Iria dormir com uma angústia quase doce, noite após noite. Com saudade do retrogosto de cigarro nos beijos dela. Do cheiro de Xampu que tomava meu quarto depois dos longos banhos gelados que tomava. Da ordem que ela punha na minha bagunça. Eu via que até o gato ia sentir sua falta.

Faltava pouco para a hora de entrar no carro e levá-la no aeroporto. M. no entanto dormia a sono solto. Tinha arrumado as malas previamente. Era muito mais organizada do que eu, que deixava sempre tudo para a última hora.

Enterrei minha cabeça nos cabelos dela e pedi que o tempo passasse um pouco mais devagar, mas logo o despertador tocou e ela levantou sobressaltada.

Deu um sorriso amarelo e um curto beijo em meus lábios. Se levantou sem dizer nada e eu fingi que olhava algo no celular. Não queria que me olhasse e visse a vermelhidão nos meus olhos. Não havia dormido nada, ansioso com sua viagem.

Ela pôs tudo em ordem e veio até mim.

- Vamos. Já é hora. Não posso perder o vôo.

Eu me levantei, fingindo um sorriso e peguei as chaves do carro.

Ela conversou alegremente sobre o que iria fazer quando chegasse em casa. Disse que ligaria assim que pudesse. Falou que gostaria que eu lhe visitasse em breve.

Eu assenti com a cabeça e tentei me concentrar no caminho até o aeroporto. Ela continuou a tagarelar.

Estacionei o carro, retirei a mala e fomos até o guichê de sua companhia aérea.

Ela despachou a bagagem e fomos até o portão de embarque.

Nos despedimos sem muita conversa e ela seguiu pela entrada. Me retive ali ainda por um tempo, um pouco atordoado e só depois que não restava mais ninguém do lado de fora da ala de embarque eu me virei e voltei para o carro.

Liguei o rádio numa estação qualquer e tomei o caminho de volta.

Em casa, o gato estava sobre a cama, deitado no lado em que ela dormira. Deixei-o quieto.

Sentei-me a escrivaninha e abri o computador. Eu logo voltaria a minha rotina de beber, escrever e dormir... Mas não havia nada para agora.

Caí na cama pensando em como seriam as coisas daqui para frente.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 08/04/2014
Reeditado em 18/06/2014
Código do texto: T4761139
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