A Louca da Orla
 
Cruzava sempre com ela no calçadão. No início, eu não tinha certeza se era ela ou ele. Cabelo curtíssimo, seios quase imperceptíveis. Nenhum sinal evidente, à primeira vista, de um ou outro gênero.
 
Com o tempo, cheguei à conclusão de que era mulher. Feição eslava, loura, miúda, camiseta azul celeste do uniforme dos empregados de um condomínio. Às vezes, sorria. Não para mim. Sorria por sorrir. Ou mexia os lábios como se estivesse falando com alguém. Ou então falava e ria sozinha.
 
Acreditando que se tratava realmente de uma doida, em pensamento concedi-lhe o título de louca. Lá vem a Louca. Lá vai a Louca. Sempre no calçadão da Avenida Atlântica. Louca da Orla.
 
Como de costume nas minhas caminhadas matinais no calçadão, parei diante do carrinho do Alemão e fui pedindo o meu coco verde. Nesse dia, a Louca estava sentada no único banco à sombra fresca de um sombreiro, que também sombreava o carrinho. Ao perceber que eu não tinha onde me sentar, a não ser sob o sol escaldante, ordenou que eu compartilhasse o banco de madeira com ela, batendo no assento com a palma da mão direita.
 
- Sente-se aqui - ela disse entre gentil e autoritária.
 
- Bom dia, com licença - obedeci com o coco gelado nas mãos.
 
- Hoje estou aborrecida - ela disparou à queima-roupa.
 
- Que houve?
 
- Marido não me quis noite passada.
 
- Acontece, é normal. Provavelmente ele estava cansado. Então preferiu refugar antes a desistir tentando.
 
- Uma semana não me procura.
 
- Deve estar com algum problema. Logo passa.
 
- É a Dirce...
 
- Quem é a Dirce, e que tem ela?
 
- Sou faxineira no prédio. Ela limpa apartamentos; diarista. Dá em cima do meu marido.
 
- Vai ver é impressão sua.
 
- Veio há pouco do Norte a desgraçada. Bonita. Mais nova. É isso. Os homens gostam dela.
 
- Bobagem.
 
- Arrasta as asas pro meu polaco. Ele se derrete todo. Devia ver a cara dele.
 
- Só querem ser gentis um com o outro, nada mais.
 
- Ele me chama de maluca. Faz tempo me fez consultar psiquiatra em Curitiba.
 
- Sentiu-se melhor?
 
- Misturei tarja preta com conhaque. Dizem que saí nua na rua. Seis meses internada no Nossa Senhora da Luz com loucos.
 
- Puxa! E o marido?
 
- Não me abandonou. Toda semana me visitava. Levava fotografias das crianças. Depois que saí, viemos pra cá. Ele veio trabalhar na construtora, eu arranjei emprego no condomínio. Tudo andava bem até a Dirce aparecer.
 
- Ainda toma remédio?
 
- Pra quê? Não sou louca. Apenas diferente.
 
- Vai ficar tudo bem de novo. Deixe de cisma.
 
- Ainda mato a nojentinha. Vai despencar de um apartamento alto. Fico na espreita. Quando ela estiver limpando a janela, sentada no parapeito, ninguém em casa, entro de mansinho e empurro. Vai ser bonito ver o voo lá de cima. Safada.
 
- Não faça isso! Melhor, nem pense nisso. Vai se complicar.
 
- Acho que não teria coragem. Fica só na vontade. Talvez dê uma surra nela, então.
 
A Louca perguntou as horas ao Alemão. Ele respondeu e ela levantou-se dizendo até logo, terminou a folga, volto pro batente.
 
- Até logo. Juízo - recomendei.
 
Paguei o coco e fui saindo. O Alemão falou não ligue, ela não bate bem, mas é inofensiva. Não é de fazer mal.
 
Na manhã seguinte, eu no calçadão de novo. Uma ambulância entrou berrando na avenida e parou logo adiante. Mais um afogamento no mar, pensei.
 
Avistei a aglomeração do outro lado da rua, defronte o edifício mais alto do trecho. Chegando, fui ver o que era. Perguntei o que foi a um moço vestido com uma camiseta igual à da Louca. Certamente funcionário do condomínio.
 
- Foi a Dirce. Caiu do décimo quinto andar a coitada.

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N. do A. 1 – Na ilustração, alegoria denominada Vênus, Cupido, Loucura e Tempo de Agnolo Bronzino (Itália, 1503-1572).
 
N. do A. 2 –  Este texto faz parte do livro Botões de Hibisco Branco e Outras Histórias, publicado pela Amazon em versões impressa e digital:
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 09/04/2014
Reeditado em 13/09/2020
Código do texto: T4762201
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