UTOPIA E O EFEITO DEPOIS DA CAUSA

Duna aguardava ansiosamente o dia em que a veria outra vez . Já se passavam duas semanas desde o primeiro e único encontro , com promessas de se verem novamente . Mas os dias seguiam arrastados , com se o relógio tivesse preguiça ; no trabalho não conseguia se concentrar direito , sendo advertido pelo Chefe que habitualmente já não ia com sua cara .

Quero que cuide disso ainda hoje , disse o Chefe , batendo com uma pilha de pastas na mesa de Duna .

O que é isso ? , perguntou ele , saindo de sua imaginação e retornando ao mundo real .

Ora essa, bufou o Chefe , em pé a sua frente , seu trabalho , o que mais seria ?

Saiu , retornando a sua sala , deixando para trás o cheiro forte da sua loção pós barba . Duna Logo emergiu novamente em seus pensamentos , até que nas costas de uma planilha começou a traçar o rosto de uma mulher . Como não era nenhum desenhista , o resultado foi uma caricatura feita a lápis 2B , que mais se parecia com um desenho de criança .

Não , não é isso , disse Duna a si mesmo , insatisfeito com o resultado .

Tornou a riscar um novo rosto , agora com a aparência de desenho oriental , com olhos grandes e redondos . Mas também não era isso , ainda não . Se levantou e foi até o banheiro que estava com perfume forte de desodorizador de lavanda misturado com cheiro de merda . Abriu a torneira e mergulhou o rosto nas mãos cheias de água . Olhou no relógio . Cinco e meia . Ainda faltavam trinta minutos para ir embora .

Sera que aguento ?

Outra noite se aproximava , e isso o deixava nervoso . Novamente aguardaria por um sinal , deitado no seu colchão ortopédico olhando para o teto de gesso .Dois outros funcionários trajados com seus ternos entraram no banheiro .

Meu deus , mas que porcaria aprontaram aqui ? , disse um deles tapando o nariz com a mão .

Perguntaram a Duna o que ele fazia ali dentro olhando para o espelho , sorrindo , em meio aquele fedor .

Esquece Silva . Esse cara tá delirando assim a uma semana . Desde que se encontrou com aquela garota , falou um deles para o amigo .

Mas que garota ? , quis saber .

Como assim , que garota ? Esse cara só fala dela , respondeu .

Duna pegou algumas folhas de papel toalha e saiu , passando pelos dois que falavam de ti sem se dar conta de que estavam ali .

Na farmácia Duna explicava sua situação ao farmacêutico .

Mas não posso vender estes medicamentos sem receita , senhor , disse o homem de branco .

Mas onde arranjo uma receita medica hoje, a essa hora da noite ? , perguntou Duna , demostrando aparente insatisfação .

O homem de branco se virou para o armário repleto de caixas e tirou uma . Disse que sem uma receita , era aquilo que poderia lhe vender .

Mas o que vou fazer com xarope de maracujá ? , falou Duna lendo o rotulo . Preciso daqueles , quero dormir , preciso dormir vinte e quatro horas . No mínimo .

Volte com a receita , senhor , disse o farmacêutico , devolvendo as outras caixas na prateleira .

Não esta entendendo minha situação , disse Duna , tentando uma ultima investida .

E o senhor a minha , posso perder minha licença lhe vendendo essas coisas sem uma receita .

Saiu da drogaria sem nada , mas antes subiu na balança e viu que tinha emagrecido cinco quilos desde a ultima vez que pesara . As roupas lhe pareciam sacos de batatas no corpo , folgadas demais , e nessa manha precisou amarrar as calças com um pedaço de barbante para que não caíssem . Seguiria o resto do caminho para casa a pé . Pouco mais de dez minutos de caminhada , sem contar as paradas nos semáforos . Uma voz familiar lhe chamou .

Duna , hei , Duna ! , gritou essa mulher de cabelos vermelhos alaranjados .

Ele olhou para trás acenou , sem muita empolgação . Foi mais um gesto automático , e quando viu de quem se tratava sentiu-se arrependido do que fizera .

Meu deus, quanto tempo , disse a mulher , que trazia uma sacola de mercado com folhas de alface saindo por cima .

Com um sorriso forçado , Duna beijou o rosto da mulher sem dizer nada . Estavam parados em frente a vitrine de uma loja de calçados .

E ai , o você parece bem , começou ela , te vi ante ontem comendo naquela pastelaria , vejo que não mudou sua dieta .

Gosto dos pasteis que vendem lá , falou D. , o queijo tem um que de diferente . É picante …

Argh …, odeio pimenta .

Duna olhou para o relógio , dando sinal de que estaria atrasado . Mas a ruiva nunca foi muito ligada . De fato , sempre foi inconveniente , falou a si próprio .

Olha , faz um tempão que a gente não se vê , continuou ela , o que acha da gente ir tomar alguma coisa . Tem um barzinho legal bem perto daqui .

Não sei não , respondeu , dando outra olhada para o paraguaio algemado a seu pulso .

A todo momento olha as horas , esta atrasado para algum compromisso ?

Essa era a chance que precisava . Só dizer sim e se livra dela .

Compromisso ? Não , nada de mais , disse ele não querendo parecer rude , onde é esse tal barzinho ,então ?

O mal de não saber dizer não .

No bar . Paredes repletas de fotos de cantores e cantoras dos anos cinquenta e sessenta .

Não bebe mais , Duna ? Ainda nem mexeu no seu copo .

O colarinho começava a descer e deixar marcas como se fosse sabão no vidro . Duna olha para o copo e pensa se realmente não esta sujo .

Sabe uma coisa que li esses dias ? , diz ele dando um gole no copo sujo , li que tem uma proporção aceita de formigas e pelo de rato em nossa comida . Li que , não é porque não encontramos uma asa de barata no queijo que ele esteja cem por cento limpo . As industrias tem uma margem de porcaria que pode passar 'desapercebido' e vir parar no nosso prato ., sem que isso seja errado . Então se você come um hambúrguer e não sente nada de diferente nele , a lasca da unha de quem o preparou é aceitável .É como varrer sujeira para debaixo do tapete .

O casal que dividia um x salada na mesa ao lado ouvia a conversa .

Se eu fosse vocês , fala Duna aos dois , eu iria até a cozinha meter uma bala na cabeça do cozinheiro .

Ficam sem saber se dão rizada ou voltam a comer .

Meu deus , cala essa boca , diz a ruiva , rindo , achando graça , enquanto o casal volta a comer o seu lanche sem o mesmo apetite de antes .

Os dois trocam olhares por um momento , para depois desviarem para outro lugar . Ela sente o rosto corar , e ele saca um cigarro do maço . Quando leva o a boca , a ruiva adverte que não pode fumar ali . Com o cigarro apagado nos lábios diz que aquilo é uma droga .

Impedir que alguém fume num bar e ridículo . Olhe só para os lados , todos estão bebendo e comendo frituras encharcadas no óleo e ninguém , ninguém os adverte da diabetes , mas encanam com o câncer .

A sacola de alface esta ao pé da mesa . As folhas saltando para fora .

A ruiva tira o cigarro dos lábios de Duna e bota na mesa .

O som ambiente esta baixo , muito baixo , e o que se ouve é trilha sonora para o barulho dos carros e caminhões que não param nem com a noite que já é realidade . Ela escorrega um envelope pela mesa . O envelope branco com um lacinho rosa chega e para ao lado do copo de dele .A direita do cigarro apagado .

Iria ser importante para mim se você fosse , diz a ruiva .

Duna olha o envelope , e sobre ele a mão dela permanece. Só então nota a aliança de noivado brilhando no seu dedo anelar . Ele tira outro cigarro do maço e acende .

Ei , já disse que não pode fumar aqui , repete a ruiva , puxando sua mão para si .

Não me importo . Se eles quiserem , que me tirem daqui . Isso é um bar , não uma igreja .

Duna finge não dar bola para o envelope . Mas percebe-se que ficou agitado , não parece estar confortável sentado ali , com aquilo bem a sua frente .

Ela pergunta se ele não vai abrir .

Ele responde que não .

Ela diz que vai se casar .

Ele diz que não é problema seu .

É daqui a dois meses , vê se consegue aparecer , nem se for para festa .

Duna lembra que um dia pensou se casar com ela . Lembra que no dia que terminaram , que ela terminou , tinha uma aliança em seu bolso . Teve que devolver , sem reembolso . Havia pago duas parcelas de vinte e quatro .

Senhor , não pode fumar aqui, fala um atendente qualquer segurando o cardápio .

Duna diz que vai terminar aquele e depois ir embora . O homem pede para que ele apague o cigarro . Duna da outra longa tragada e sopra a fumaça no rosto da ruiva . Se levanta .

Foi você quem me trouxe aqui , você paga .

Ele deixa o envelope e vai embora .

Joga a bituca na sacola de alface .

Demorou bastante no banho sem se importar com o racionamento de água . Um copo de leite aquecia no micro-ondas , quado saiu do banheiro , deixando pegadas úmidas até a cozinha , pensou na grande noite que teria .

Embrulhado no seu roupão de banho azul marinho se estendeu na sacada do apartamento com o copo de leite morno . La em baixo as pessoas pareciam formigas , os carros vaga-lumes mutantes . Pensou na ruiva se casando , vestindo branco - que piada – usando sua calcinha vermelha por de baixo do vestido .

Aquele farmacêutico , ele poderia ter facilitado as coisas , murmurou para o vento .

Se sentou na cama com caderno e caneta . Desenhou o rosto de uma mulher . Uma caricatura . Desenho infantil . Se concentrou bastante , tentou lembrar da cor de seu cabelo . Era liso , disso tinha quase certeza. Pensou que se desenhasse vários tipos de olhos talvez um o fizesse lembrar com era o da ...então lembrou que não sabia seu nome .

Mas que se dane .

Estava apaixonado , o nome dela não importava .Ela o completava , disso tinha certeza. Perfeita . Tudo que sonhou .

Um sonho .

Talvez , quem sabe , essa noite .

Quando deitou a cabeça no travesseiro se lembrou do canhão debaixo dele .

Quem sabe essa noite .

15/04/2014

15h41m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 15/04/2014
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