Mon Amour!

O céu estava numa palidez mórbida. As nuvens pareciam estar comovidas, quase à ponto de chorarem entre si, e cair aquela tempestade. Mas foi somente um alarme falso. Seguraram o choro, mas continuaram tão cinzas como um nevoeiro no inverno. Eu estava sentada numa rocha, perto da praia. Minha calda azul brilhante pesava às vezes, pois eu nadava muito. Sentei-me ali, e fiquei a fitar as ondas. Mesmo com o céu tempestuoso, o mar estava calmo. Na verdade, tudo era tão fúnebre, que senti no âmago de meu peito, uma dor inexplicável. Devia ser minha cabeça, meus nervos...não sei. Acho que estava cansada daquilo tudo.

Não pense você que sou agradável; sou cruel. Já devorei centenas de homens, e enfeitei minha caverna com seus esqueletos. Crânios eram minha parte favorita, e nunca acreditei no amor dos humanos. Mas, enquanto estava ali, descansando naquele rochedo, apareceu um rapaz de beleza tão farta e exótica, que fiquei perplexa. Minha vontade de seduzi-lo e devorá-lo já estava me apetecendo, até observá-lo bem; sobrancelhas tão bem feitas, e um queixo proeminente, e olhos azuis porém baixos. Diria que era um príncipe, se não fosse suas roupas simples. Mas, de fato, para mim, naquela hora, era mais um rei. Cabelos dourados e tão finos quanto a areia. E de fato, matá-lo não seria boa ideia. Como iria eu, contemplar tal beleza se o elimina-se? Chamei-o. Nossa, como fui audaciosa! E nisso, percebi, que ele temeu, mas quando ia partindo, comecei a cantarolar. Minha voz veio de meu diafragma, e percorreu em todo o meu corpo, até chegar à garganta e sair pelos lábios. Isso foi doce. Minto; foi puro veneno. Enfeiticei o rapaz, e o trouxe até a mim. Estava encantado. Quando retirei o encanto, disse para não temer, pois apenas queria uma boa conversa. Era solitária. Nisso, não menti. E, queria a companhia dele por alguns momentos, e sendo assim, o rapaz cedeu. Conversamos sobre várias coisas. Contou-me sobre livros. Disse a ele que não sabia ler. E, este prometeu-me trazer um, e ler para mim. Perguntou-me que tipo de estórias eu gostaria de ouvir. Respondi que gostava de seres mágicos, que tanto os humanos contam e cantam. O jovem sorriu. Não era o que gostava, porém, disse-me que ia procurar algum 'conto de fadas'. Algo assim. Gostei de como soou isso de seus finos lábios. Eram vermelhos. E os dentes, alinhados, cor marfim. Adorei-o, de fato. E, quando partiu, o céu pareceu mais limpo, mais colorido. Voltei para o mar.

Noutro dia, o sol estava alto, e as nuvens espessas. Na verdade, quase não as via. E daí, ele veio. Sentou-se na areia, e fui até onde estava. Deitei naquela superfície arenosa, quente e macia. E enfim, mostrou-me um livro intitulado 'A Pequena Sereia' de um autor chamado 'Hans Christian Andersen'. Disse-me que achava interessante contar-me uma estória de alguém como eu. E assim, começou a ler. Era tão interessante ao narrar o texto. Mesmo sendo tão simplório, as palavras saíam facilmente de sua boca, assim como a música flui de meu ser. Quando terminou o conto, exclamei:

- Ah, que cruel!

- Por que? - Perguntou-me, com aqueles olhos azuis quase que translúcidos. Era tão bonito!

- Ora! Nunca pensei em ter pernas, e nem sei se isso é possível. Mas, ela teve sua língua cortada, e sofria ao andar. Tudo isso para que? Ver seu amado com outra e perder sua vida? - disse um pouco revoltada.

- Aaaah, entenda! Ela não perdeu a vida. Ela teve uma nova chance, de ajudar pessoas, e assim, conseguiu o que queria desde o início: vida eterna. - respondeu-me pacificamente. Sua voz era calma.

- Trocaria a vida eterna para deitar-me no peito de meu amado, nem que fosse por alguns instantes. - Balbuciei.

- Tens algum amante, fada do mar? - Estava curioso. Desviei o olhar e respondi com a voz empoeirada:

- Não. Mas, acho que deitar no peito de alguém que se ama, deve ser um oásis.

- Não tens paz, Sereia?

- Ando cansada, ultimamente. - Estava pela primeira vez, abrindo meu coração que outrora, era intangível.

- Do que? - Perguntou-me a fim de saciar sua curiosidade.

- De ser assim - nada. Apenas um ser marinho, que vaga por aí, esfomeada, devorando homens. Quisera eu ter a audácia dessa Sereiazinha, e mudar o curso de minha vida. - Desabafei.

- Sabe, para mim és mais que uma Sereia; és importante. - Sorriu.

Senti meu coração ser aquecido naquele momento, e acho que à partir dali, o amei. E todos os dias, ele vinha ler para mim, contos maravilhosos, e depois conversávamos sobre eles. Sempre voltava para o Oceano radiante de satisfação. Não, não esse mero sentimento. Não é isso...na verdade, não sei explicar. Era como se, quando estava com rapaz, eu realmente era algo a mais. Algo além disso que sou. Mais que isso; sentia paz quando conversava com ele. Num desses dias, o jovem sem querer tocou-me na mão. Senti sua pele macia e quente - o cheiro que emanava dele era de pureza. Algo muito limpo. Sei lá. Porém, eu tinha um dom das águas. Sempre sabia quando algo estava errado. E de fato, coisas começaram a acontecer. Ele sempre fora magro, mas estava ficando mais que devia. E, uma aureola escura envolvia seu olhar. Estava mórbido, com ossos salientes, e a cavidade ocular já se destacava. Eu já sabia - uma grande dor viria, e o levaria embora. Porém, sofreria muito antes de partir. Estava deveras doente. Aquilo doeu-me tanto! E, conforme os dias iam passando, o rapaz piorava. Pedi-lhe um presente; duas moedas de ouro. E assim, depois de alguns dias, ele me trouxe.

Ai, como dói contar-lhe isso! Pensei, refleti, relutei dentro das águas, mas não tinha escolha alguma. Então, numa dessas visitas de sempre, ele trouxera um livro. Terminou de ler, e quando ia começar a falar, encantei-lhe com minha voz. Ficou parado, olhando-me e, assim, embalando-o em meus braços, o carreguei mar adentro, até se afogar. Foi horrível ver meu querido se contorcer e tentar subir, enquanto o mantinha ali, firme, e não o soltava de jeito algum. Não podia; aquele era o menor de seu sofrimento. Lutou bravamente pela vida, porém, fui mais forte. Quando tudo terminou, subi à superfície carregando o corpo do jovem louro, e coloquei-o dentro de um barco. Peguei as duas moedinhas de ouro que me trouxera, e pus uma em cada olho, para que pudesse pagar ao barqueiro no outro mundo, para fazer sua passagem. Desatei o nó que prendia o barco, empurrei, e o vi indo embora junto das ondas marinhas.

Chorei. Pela primeira vez na vida, senti uma dor enorme que fez brotar em meus olhos pura ardência e amargueza. Eu o amei! E, se pudesse, deitaria em seu peito, para sentir seu coração batendo forte e saudável. Mas, passou. E cá estou novamente, devorando homens. No final de tudo, nada sou sem a pureza daquele olhar.

Dama William Dante
Enviado por Dama William Dante em 17/04/2014
Código do texto: T4772326
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