Condenados

Tinha plena consciência de minha morte, apesar de não notar nenhuma diferença entre esta e a vida. A única coisa que me surpreendeu foi saber que realmente existe essa história de pós-vida. Eu andava pelas ruas e ninguém me via, mas eu enxergava todos. Era engraçado. Não que minha presença fosse percebida enquanto eu habitava o mundo dos mortais. Mas, em algumas situações, eu era agredido quando esbarrava nas pessoas devido a uma característica falta de adequação ao espaço em que deveria caber. E aí eu notava que ainda permanecia vivo.

Vagar pelo mundo e, simultaneamente, habitar o outro lado era uma experiência incrível. Podia invadir a privacidade de outras pessoas sem que elas reclamassem comigo. Transformei-me em um voyeurista profissional. E nada podiam fazer contra mim. Passei por ridículas situações em que tentaram me expulsar de casas por meio de rezas, oferendas e água benta. Não resolvia. Detestava a ideia de ser confundido com um espírito ruim. Achava injusta essa nomenclatura. Eu só queria me divertir um pouco.

Não, eu não sei há quanto tempo morri, mas, desde então, ando por aí. Sem lenço e sem documento. Não preciso dar satisfações a ninguém. Minha mulher, agora viúva, não telefona mais para mim. As exigências e cobranças tinham ido comigo para a sepultura, mas terminaram lá. Eu não as trouxe para a minha nova vida desmaterializada. E adorava essa ideia. A última coisa de que me lembro é um caminhão vindo em minha direção. Depois, acordei em um lugar fechado e sufocante. Gritei com todas as forças, mas ninguém me escutou, até que percebi que era capaz de me mover livremente.

Ao sair do meu espaço escuro, notei que estava preso em uma gaveta do Instituto Médico Legal. Não vou esconder o choque que foi ver a mim mesmo sem vida. Inerte, gelado e nu. Essa foi a parte mais constrangedora. Saber que todos poderiam ver a minha falta de trajes deixou-me enrubescido. E eu me perguntei como poderia ficar assim se não tinha mais sangue correndo em minhas veias. Shakespeare estava certo quando afirmava que há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.

Costumava sair para dar voltas pela cidade. Era estranha a sensação de estar morto e continuar vivo. Lembrava vagamente da frente de um caminhão me atingindo. Foi rápido. Morrer não dói tanto. Em minha caminhada solitária, passei por um grupo de crianças que corria por pequenas vielas. Queria ter tido filhos para perpetuar meus genes e meu sobrenome. Gostaria que eles se lembrassem de mim como um pai exemplar, mas, para a desgraça dos meus sonhos, nasci estéril. E foi assim que descobri que minha primeira mulher me traía.

“Amor, estou grávida”, contou-me com um sorriso sonso no rosto. Ao ouvir a frase, comemorei. Somente depois me lembrei da infertilidade.

“Agora vamos descobrir quem é o pai, querida, para parabenizá-lo juntos.”

Naquela mesma noite, mudei-me para uma pensão no final da minha rua. Ela e o pai da criança foram morar juntos na casa que comprei. “Bem feito. Avisei a você para colocar o imóvel no seu nome. Nada disso teria acontecido”, agraciou-me com doces palavras o meu pai.

Eu sabia que ele estava certo, embora não quisesse admitir. E decidi que viveria recluso na pensão e só sairia de lá para trabalhar. Até que a vida me surpreendeu com outra mulher. Dessa vez, tive mais sorte. Ou preferi acreditar nisso até o meu último dia. Tirando as cobranças e os gastos excessivos, Lorena era uma boa companheira. Mas preferia que ela mantivesse a boca fechada para me iludir de que fiz a escolha certa. Conseguimos nos suportar durante dez anos. Iríamos completar onze no dia seguinte à minha morte. Acho que ela teve alguns motivos para comemorar.

“Você é um inútil. Só serve para me pedir favores. Eu não sou a sua mãe. Ela, sim, tem que servir aos seus delírios. Não me confunda”, dizia diariamente, enquanto eu fazia o possível para não tomar o vidro de cicuta que guardava para casos emergenciais. Tirando isso, nossa relação era ótima. Eu passava o meu dia preso em um escritório com pessoas e trabalhos que detestava. Ela arrumava a casa, a cozinha, o cabelo e o corpo para alguém que não era eu.

Enquanto caminhava por uma avenida, uma pequena bola azul caiu ao meu lado. Tentei chutá-la, mas meu pé a atravessou. E novamente me assustei porque tinha esquecido minha limitada condição de morto. Um garoto correu, parou perto de mim e lançou-a para os amigos. Sorri para o menino, que me ignorou. Eu era oficialmente uma figura invisível. Não ficaria triste quando o seu Pessanha, meu chefe, passasse por mim e não me dirigisse uma palavra sequer, mesmo com meu sincero desejo de bom dia.

Andei uns quarteirões e parei em frente à minha casa. As luzes acesas indicavam que Lorena estava acordada. Entrei sem abrir a porta. Essa nova forma de adentrar todos os locais que desejava era um ponto extremamente positivo. Ela dormia no sofá da sala. Um sentimento de ternura tomou meu peito, até eu recordar todas as vezes em que ela desejou a minha morte. A tranquilidade de sua respiração trouxe-me aflição. Percebi que ninguém iria se referir a mim de forma positiva, mesmo depois de morto. Não me santificariam. Não discursariam exageradamente sobre qualidades que nunca tive. Terei sorte se as pessoas se lembrarem de mim.

Fui até o meu quarto, cuja cama ainda estava bagunçada, e tentei pegar o antidepressivo. Não consegui tocar na caixa de remédio. Meu coração acelerou e tive certeza de que seria acometido por um infarto. “Você está morto”, gritou uma voz dentro da minha cabeça. Era a minha consciência tentando controlar meus impulsos e medos ridiculamente humanos. Voltei para a sala e observei Lorena por minutos. Ou talvez horas. Perdi a noção de tempo. “O que farei de agora em diante? Essa palhaçada de céu e inferno era a maior sacanagem. Estou vagando há tempos e não tenho ideia do que fazer”, e sentei para pensar sobre a morte.

No momento em que raiava o dia, Lorena acordou. Bocejou, ajeitou seus cabelos longos e pretos e levantou-se. Parecia pouco mais velha do que a última vez em que nos vimos. Era angustiante a sensação de não saber há quanto tempo tinha morrido. Será que ela já me substituiu? Será que mora com um rapaz novo, bonito, charmoso e rico? Sem dúvidas, ela buscaria alguém oposto ao meu fracasso enquanto marido, empregado e ser humano. “Quando você morrer, vou estar tão traumatizada com casamento que ficarei sozinha.” Adorável Lori. Era assim que costumava me referir a ela enquanto era ameaçado.

De repente, em meio a recordações de minha vida terrena, fui surpreendido por um grito ensurdecedor. “Assombração! Assombração! Tem um morto na minha cadeira!”, berrava minha beata viúva, correndo pela sala e segurando uma cruz de madeira. “Sai! Eu ordeno que você saia da minha casa. Diabo! É o demônio!” O pavor em seu rosto me trouxe uma sensação de revanche. Lembrei-me de todas as más palavras misturadas aos acessos de fúria e tentativas de agressão física. Nunca havia acreditado em destino até aquele momento. E descobri que minha morte não foi em vão.

Com uma risada maléfica diante de olhos apavorados, levantei-me da cadeira e estiquei os braços em sua direção. E, como uma espécie de fenômeno poltergeist demoníaco, o aparelho de som ecoou a voz de Celi Campelo, com “Estúpido Cupido”, sem que ninguém o ligasse. Rodando ao redor de uma Lorena em choque, eu ria, extasiado com a possibilidade de tornar um inferno a vida daquela mulher. Era a melhor forma de me vingar dos piores momentos de minha vida. “Minha querida, eu voltei para ficar. Estamos condenados um ao outro. E nada me fará sair daqui. Que seja eterno enquanto dure!”

Sem dúvidas, a vingança é um prato que se come frio. Frio assim como meu corpo inerte que, agora, apodrecia sob a terra. Ao desespero de suas lágrimas, mesclei a graça de meus risos irônicos. Permaneceríamos juntos exatamente como juráramos diante do padre quando nos casamos. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. Na riqueza e na pobreza. Mas nem a morte nos separa.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 30/04/2014
Reeditado em 05/06/2015
Código do texto: T4789018
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