O DIA DAS MÃES

Era o dia das mães. Em todas as casas havia festa: música, bebidas, crianças, adultos, todos alegres. O tempo colaborava com um céu sem nuvens. O sol parecia sorrir. Todos festejavam aquele dia. Entretanto, uma imensa nuvem de tristeza ameaçava invadir a minha alma. O motivo? Os restos mortais de mamãe estavam sepultados em um cemitério distante. Duas opções se apresentaram à minha frente: Deixar-me contagiar pela alegria dos que tinham mãe ou recolher-me à solidão dos órfãos maternos. Descobri uma terceira: Visitar os locais aonde ecoava ainda as notas das canções onde ela costumava cantar enquanto lavava roupa. Deixei o carro no Largo do Afonso e subi o córrego, em direção à casa de taipa debaixo do ingazeiro onde se acomodava, não sei como, meu pai, minha mãe e mais oito irmãos. Mal assentei o pé no calçamento uma senhora vestida de branco tomou-me a mão. Ela tinha a pele morena, sorria e os seus olhos brilhavam mais do que o sol. Vendo meu espanto ela falou:

―Não está me conhecendo? Eu sou Maria de Antônio Santa Cruz, aquela que ficou cega pelo glaucoma.

―Conheci então a voz. Era ela mesma. A mulher da qual eu furtara, quando criança, garrafas vazias para vender. Ela me flagrou, e discretamente contou à minha mãe. Levei uma sova com um cabo de vassoura e a vida toda agradecido àquela mulher.

―Venha, vou guiá-lo até lá em cima.

―Não precisa, depois dos sessenta anos a gente aprende a andar sozinho.

―Mas eu não lhe vejo com esta idade. Aos meus olhos você ainda está muito jovem. A cegueira congelou o tempo.

Então lhe perguntei:

―Como sabia que eu viria?

―Todos os anos nos dias das mães eu venho a este lugar. Como sua mãe eu tive muitos filhos e filhas. Todos eles cresceram, casaram, tiveram filhos e continuaram morando aqui, nesse córrego que parece se alimentar do sangue dos seus moradores.

Lembrei-me que ao chegar naquela terra no ano em que o Brasil ganhou sua primeira copa eu havia feito um juramento de sangue com ela. Ao ferir a terra com uma faca cortei os dedos e o sangue escorreu para o solo. Então, inspirado pelos pactos entre brancos e índios das histórias de quadrinhos que lia avidamente, fiz um acordo com a terra: o sangue dos meus parentes seria poupado em troca da poesia e a responsabilidade de valorizar aquele bairro que parecia o cú do mundo.

―É verdade, retruquei, quase toda família daqui teve um membro assassinado.

―Menos a sua, e isso acho que foi por causa de sua mãe.

Tive vontade de falar do pacto, mas soaria como besteira de menino. Melhor o mérito, muito mais do que merecido, para minha mãe.

―Como assim?

―Sua mãe era uma pessoa especial, diferente, humana, alegre, honesta e muito solidária com o sofrimento das pessoas. Parece que estou vendo-a, baixinha, roendo as unhas, ouvindo as pessoas e pronta para soltar suas palavras de muita experiência e sabedoria. Consolava a todos: crianças, meninas, adultos, tratava bem os bêbados, tirava do que não tinha para matar a fome de alguém, chorava com os tristes, se alegrava mesmo na dor, nunca perdia a esperança, tinha um amor imenso pela vida.

Fiquei animado com a possibilidade de ver o espectro de minha mãe, quem sabe até falar com ela como estava falando com Dona Maria de Antônio Santa Cruz. Ela leu os meus pensamentos.

―Console-se, você não verá a sua mãe. Eu venho porque toda a minha família se reúne. Eles também não me veem, mas sentem a minha presença. É irônico que quando eu era viva não os via, agora que passei para o outro lado posso vê-los.

―Isso quer dizer que terei que reunir todos os meus irmãos para que mamãe venha até nós? Perguntei já com os olhos cheios de lágrimas.

―Lamento, mas só pode ser assim.

―E se eu fosse o remanescente, o ultimo filho vivo?

―Ai seria deferente porque os outros já estariam com ela, mas não chore, dona Severina continua viva na memória dessa gente. A semente que ela plantou nesse córrego germinou com muita força. Você se tornou uma autoridade, um oficial da polícia militar, seus versos ainda são repetidos por muitos nas esquinas, nos bares, nas escolas. Águas Compridas não é mais a terra que se alimenta de sangue nem o lugar onde o vento faz a volta.

Enxuguei as lágrimas e vi que havia chegado ao pé da ladeira onde ficava a casa de taipa rodeada de capim na ribanceira. Dona Maria soltou a minha mão e apontou para o alto do monte.

―A sua casa já não é a mesma, o ingazeiro foi cortado, muita gente já morreu, mas você ouvirá as canções que ela entoou enquanto morria de saudade do seu pai, disse ela se diluindo no ar.

Dona Maria tinha razão. Assim que alcancei a frente da casa onde outrora eu habitara ouvi a música que minha mãe mais gostava de cantar:

Tu não te lembras da casinha pequenina,

Onde nosso amor nasceu,

Tinha um coqueiro ao lado

O coitado de saudade já morreu.

―O senhor está bem? Perguntou um homem saindo da casa reformada. Ele tinha um copo de cerveja na mão e um olhar triste.

―Eu estou bem, apenas um pouco tonto. Acho que é o sol, está muito quente.

―Entre um pouco e descanse. Estou curtindo a saudade de minha mãe que faleceu há um ano.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 14/05/2014
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