*O DIA EM QUE O MUNDO NÃO ACABOU*

– Jesus, por favor, não deixa a gente morrer. Amém.

Assim encerravam as orações daquela noite. O ano: 1979. Eu, criança de oito anos, vi na TV em branco, preto e com chuvisco, que um aparelho da NASA iria cair a qualquer momento, em qualquer lugar.

O pânico era geral. Na escola, eu e meus coleguinhas tínhamos certeza que o mundo ia acabar naquela noite.

Não consegui almoçar nem ir brincar na calçada. Estava apreensiva. E criança com medo é como cachorro doente, qualquer um percebe.

Meu pai era um bancário que chegava em casa lá pelas sete da noite. Entre o banco e subir a ladeira até em casa, passava na pequena lojinha do seu Paulinho e comprava umas balas, um chocolate, chiclete Ploc ou qualquer bobagem que deixasse os filhos felizes.

Naquela noite ele chegou com duas cocadas, as minhas preferidas. Mas eu nem toquei nelas.

– Minha filha, o que está acontecendo?

– Ah pai, a gente vai morrer hoje. Aquele satélite da NASA vai cair na nossa cabeça.

– De onde saiu essa história?

– Eu vi na TV. - Respondi.

Meu pai ligou a TV imediatamente. Evidentemente que, naquela hora, o sinal estava fraco. Lá foi ele para fora de casa mexer na antena. E aí era sempre a mesma ladainha. Minha mãe ficava em frente à TV gritando:

– Mais pro lado, pra esquerda. Aí, fica firme.

Assim se arrumava a imagem. Colocava-se o “bombril” na antena interna e, se tivesse sinal da “Tuiuti”, via-se o Jornal Nacional.

As informações sobre o Skylab davam conta de que ele ainda estava sem rota. E mais uma monte de outras coisas que eu não entendia no auge dos meus oito anos.

– Vilma, - disse meu pai – pega as crianças, vamos pra AABB.

A AABB é a Associação Atlética Banco do Brasil. Era o que havia de mais chique na cidade. Por lá tinha grande prestígio: um clube para os funcionários do banco. Era o local da elite. Em cidade do interior sempre tem um clube para a elite.

Chegamos lá rapidinho, a pé mesmo, porque quase nunca se precisava de carro. A cidade era pequena e as ruas eram muito seguras.

Assim como meu pai, mais uma meia dúzia de sócios teve a mesma ideia. Ficaram todos em volta da mesa de bilhar confabulando sobre o tal Skylab. Aí é aquela coisa: desce uma cervejinha, um uísque, a conversa descambou para assuntos de adultos e a criançada solta no parquinho.

Éramos umas dez crianças. Todas apavoradas com o mundo que ia acabar. Nenhum adulto tinha feito a gentileza de explicar nada, e ninguém sabia direito o que estava acontecendo. Aos meus olhos, os pais estavam muito descansados e sem se importar realmente com a seriedade do assunto. Estava indignada e fazendo discurso com os coleguinhas.

Foi então que tivemos a feliz ideia de ficar vigiando o céu e calcular onde o satélite iria cair. Escolhemos uma estrela brilhante acreditando ser aquele nosso objeto de horror.

Com dedinhos apontados pra cima, fizemos cálculos certeiros de que o Skylab cairia na nossa casa. Todos acreditavam que a sua casa tinha sido a escolhida.

Naquele tempo se vendia refrigerante em garrafas de vidro. Pequenas garrafas. Todos nós resolvemos tomar a maior quantidade de refrigerante possível, porque vai que o mundo acaba, tínhamos que nos garantir… Para pagar era fácil:

– Põe na conta. – Bastava dizer isso pro dono da lanchonete e ele anotava na conta dos nossos pais. Pagava-se tudo no fim do mês.

Ficamos ali no parquinho, à noite, aproveitando a aventura. Sim, estar no parquinho naquela hora era um evento.

Papai e mamãe cansaram da conversa, estavam com fome e nos chamaram para finalmente ir pra casa.

No caminho passamos na barraquinha de cachorro-quente recém-inaugurada na cidade. Era a primeira que eu via. Na verdade, era um trailer bem pequeno perto da praça.

Fomos comendo o cachorrão rua acima. Chegando em casa, a televisão foi novamente ligada. Passava um seriado da SWAT e minha mãe achou que era muito pesado para crianças como eu estarem assistindo aquilo.

Fui dormir e ainda carregava o medo de ver o fim de tudo.

– Boa noite minha filha. Não se preocupe, o Skylab não vai cair por aqui. – Disse meu amado pai, tentando me acalmar.

Fechei os olhos e fui deixando o sono chegar. Quando estava quase apagando, lembro de pensar:

– Ah, tudo bem. Se o mundo acabar hoje tá tudo bem. Comi cachorro-quente, bebi refrigerante, andei de mãos dadas com meu pai, e minha mãe riu feliz. Tá tudo certo. Mas por favor, Jesus, não deixa a gente morrer. Amém.

No outro dia ficamos sabendo que a estação espacial Skylab caiu na Terra, espalhando pedaços pelo oceano. Ufa.

CONTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO BLOG "DO MEU INTERIOR"

http://www.domeuinterior.com.br/o-dia-em-que-o-mundo-nao-acabou-arroio-granders/