Rebeca

Carlos saiu cedo de casa. A noite foi longa, flácida, com horas escuras, sombrias e pensamentos hiperbólicos, inexplicáveis. Não quis tomar café, achou melhor pegar seu carro e sair em direção do hospital, lá tomaria o liquido indispensável, sem ele não conseguia terminar de acordar. Antes de depositar-se fora de seu mundo hermético, no que só cabiam seres inanimados, pensou na indiferença que lhe provocava ficar sem o café matinal, a final não tinha dormido nem uma hora, nem cinco minutos, nem uma cabeçada ele deu durante toda a noite.Um aturdimento tinha invadido a sua mente, atravessou a madrugada em vigilia, querendo sair do labirinto que surgiu como uma incógnita a ser descifrada. Aceso como a lareira que ardia troncos de madeira na sala, rodou a esmo pelo espaço, de um lado para o outro, esgotando todas as possibilidades que lhe levassem ao sono. Primeiro lacrou seu quarto da luz e do ruido que vinham da rua, mas não foi suficiente para evitar que girasse como um pião sobre o colchão de molas. Pensou nas molas, no movimento a mais que elas produziam, cada movimento era ligeiramente catapultado pelas molas, foi parar no chão com seu travesseiro, esticou-se nele como um sáurio. O chão de madeira estva frio, mais do que poderia supor. A madeira deveria guardar o calor que a mata estufa como o granito recolhe o frio que o rochedo abriga.

Carlos desceu para a cozinha, preparou chá de camomila, subiu para o quarto, pegou um livro que fazia meses o adulava sobre o seu criado. Gostava de ler livros de história, histórias épicas eram suas favoritas. Estava lendo sobre Átila, o humo. Quando se deu conta já tinha transcorrido mais de trinta páginas sem o apetite necessário para prender a atenção. Leu o que leu sem reter uma linha sequer. A história passou superficialmente pelos olhos sem deixar o rastro devastador que seu personagem levou pelo caminho a Roma. Olhou para o relógio , quinze para as duas da madrugada. Suas pálpebras quase não piscavam. Decidiu tomar um banho de água morna. Sentiu uma ereção incomum para o dia e para a hora. Masturbou-se alcançando o orgásmo com facilidade. Foi uma ação mecânica, desprovista de paixão, nem precisou inserir uma fantasia, sua mão oscilou sobre o membro até este jorrou o líquido concentrado durante semanas. Há um bom tempo não tinha uma experiência sexual, a não ser observar a silhueta de algumas colegas de hospital, vestidas com panos brancos, frouxos, hedônicos. Não prestou atenção na velocidade, pressão e contração que pelo comum o estimulavam. Foi sumário, peremptório como urinar ou defecar. Seu pene permaneceu lânguido, aturdido, atropelado pela ação que não distinguia o inicio ou o fim de sua rotina.

Carlos não tinha esposa nem filhos, não tinha namorada. Desde que mudou para o bairro, isso foi quando iniciou seus estudos na faculdade de medicina, se sentia falta de fêmea ia até um salão de beleza que ficava há alguns quarteirões e lá, junto com a dona, num cômodo dos fundos que servia de lavanderia, a possuia como um garanhão a sua égua, numa cópula curta, sem muitos preparos nem reparos.Ela subia a saia, ele descia a calça; ela o chupava até seu membro ficar rijo; logo ele o introduzia numa fagina salivante, esfaimada; três ou quatro minutos de movimentos sófregos e ela se abria num orgasmo que não economizava gemidos, nem arranhões;donde quer que fosse, no primeiro obstáculo que suas mãos delirantes esbarrassem, ela deixava as marcas do supino prazer que o zagal lhe promovia.A continuação, ele fazia outro tanto, com menos encenação, com quase nenhuma caracterização. Gozava profundo esmurrando sua glande nos ovários da cabeleireira e pronto. Ela mal conseguia escutar a voz do amante enquanto seu falo ejaculava, ejetava como uma fonte de água cristalina.Rebeca com seus quase cinqüenta anos, dois divorcios e quatro filhos, tinha cara de boneca, com a pele lisa, os olhos cintilantes e uma estampa libidinosa, principalmente seus lábios estofados, sempre pintados de vermelho carmim, seu traseiro convexo, redondo, grande e uma vagina inserida numa cavidade cuidada, com os pelos aparados em forma triangular, labios finos e rosados que cheiravam a frutas secas, vapores doces, vapores azedos. Ele nunca se atreveu em beijar seus lábios vaginais. Tampouco se lembra de tê-la beijado na boca. Sabia que o batom poderia deixar pistas, poderia deflagrar um fuxico que não contribuiria para a reputação de nenhum dos dois. A diferença de idade e posição, ela vinte anos mais velha, dona de salão, ele médico eram suficientescomo para que a relação permanecesse oculta aos olhos do mundo, sempre muito atentos às figurações que a mente molda com sublime morbosidade.

Nunca tinha acontecido isso antes. Ele não sabia o que era a insônia. Era uma novidade descoberta depois de quase trinta anos de vida. Não tinha remédios para combatê-la a não ser os naturais. Como médico dermatologista não cumpria plantão. Durante a residência ele cumpriu. Foram dois anos em trinta onde uma vez por semana ele pernoitava no hospital das clínicas. Noites que preferia esquecer. Durante elas ele se via empurrado a atender todo tipo de urgências. O sofrimento humano. O saguão do hospital repleto de macas com seres descarregados pelas ambulâncias que chegavam em fila. Uma procissão de acidentados, atropelados, queimados, baleados, esfaqueados, espancados, surtos psicóticos, estripulias sexuais, alem dos enfermos crônicos, cujas doêncas costumam flagelar as carnes justo quando estas deveriam descansar. Dor, a dor humana, a singular e irretratável dor humana é um dos momentos que ninguém quer se reconhecer na criação, superado somente pela morte. Mas não há como fugir dele, nascemos para sofrer a dor da matéria, a mesma matéria que nós dá prazer nós lança num sofrimento espantoso. A dor do humana não é o quexume do animal, ela se detem nos olhos, na voz, na respiração, no gesto , todos se lamentam, se lamentam de seguir vivos.

Carlos tinha um acordo com o tempo. Embora médico, costumava cumprir seus compromissos com puntualidade. Neste universo controlado pelo tempo, o sono tinha sua hora marcada para começar e terminar. Dois intervalos por jornada, um noturno que ia das doze da noite às sete da manhã, e um vespertino que se iniciava depois do almoço, borrando do relógio o tempo compriendido entre a uma e ás duas da tarde. A soma dos turnos, oito horas, eram suficientes para ele descansar o seu corpo, repor as energias. Aconteciam algumas oscilações insignificantes, que por sua vez estavam vinculadas mais ao trânsito infernal que tinha que enfrentar para atravessar a cidade do que a seu próprio trabalho. Tinha pensado mudar-se para uma casa próxima do hospital mas desistiu, estava acostumado com o seu bairro, com a vizinhança, com seu comercio, alem de que não podia prescindir da Rebeca. Havia na relação de ambos um atavismo inexplicável. Não era só prazer, havia luxúria, o molde da Rebeca lhe provocava uma concupisciência sórdida. Cómo ela podia promover-lhe tamanha virilidade? E como eles conseguia se resolver de forma tão prática? A praticidade era algo que lhe infundia respeito, pensava que na sua árvore genealógica havia algum galho anglo-saxão.

Estacionou o carro numa das vagas reservadas ao corpo médico. Do porta malas retirou seu maletim e uma bata branca. Entrou no vestíbulo, cumprimentou as recepcionistas com menos ânimo que de costume. Estava cansado, suas pálpebras pareciam carregar uma tonelada. Na ante-sala de seu consultório, sua secretária particular comentou que tinha uma garota procurando-o: "Chegou nervosa, muito nervosa, mas não é sua paciente, apresentou-se como Silvana e diz ser filha de uma amiga sua de nome Rebeca, isso a mãe dela se chama Rebeca. Parece que ela foi hospitalizada esta madrugada". Carlos abriu a porta de seu consultório, ligou para a recepção onde foi informado que a paciente Rebeca tinha vindo a óbito depois de uma anemia crônica provocada por uma hemorragia interna. O corpo estava no necrotério esperando autorização dos familiares para a necopsia. Rebeca tinha sido assintida pelo Dr. Flamarión. Carlos pegou o telefône e ligou para seu colega. Ainda espantado o Dr. Flamarión revelou que Rebeca chegou em coma, constatou que de seu abdômem partia um som parecido ao de um aparelho de barbear. Pediu uma radiografia e, atónito, viu que entre os ovários havia alojado um aparelho: " Rapaz você não vai acreditar, a paciente morreu com uma hemorragia provocada por um consolo. Mas não um consolo comum, era uma ferramenta gigante que vibrou dentro como um mergulhão até estourar a horta, só foi parar quando o tirei com minhas próprias mãos".

Carlos desligou o aparelho, foi até a morgue onde havia um corpo sobre uma mesa de inox coberto por um lençol verde. Rebeca estava nua, com os olhos abertos, observando-o. Sua pele invadida do livor cadavérico a fazia ainda mais bonita. Levantou seu braço no vazio, soltou-o até que ele topou com o aço. Não tinha rigor mortis, seus músculos permaneciam lânguidos, entregues a inércia, a qualquer inércia. Rebeca era como uma boneca grande, de carne e osso, nua, linda, perfeita. Não manifestava nenhum sinal de tortura, nem mesmo sofrimento. Seu rictus facial estava sereno, aliviado. Seus labios, pintados à carmim, desenhavam um sorriso. Carlos sentiu uma ereção súbita, massageou seu falo, beijou o corpo morno da Rebeca, o corpo que ele tanto desejou estava desfalecido, entregue à seus desejos, não havia obrigação, permanecia uma devoção erótica que ele não conseguiu coibir, estava suando, seu corpo entrou num frenesí. Carlos beijou a boca da Rebeca, beijou sua vagina, se lambuzou no sangue de sua amante, girou seu corpo até ficar em decúbito dorsal, saltaram as nádegas, duas montanhas de carnes redondas, lisas, perfeitas. Tresloucado ele abaixou as calças, seu falo estava explodindo, penetrou-a com força, com raiva, chorando como um menino, concluiu o orgasmo com um vagido de dor.

Momentos depois Carlos foi encontrado dormindo nu sobre Rebeca. Por fim ele dormiu, ambos dormiram juntos um sono eterno.

Luis Navarrete
Enviado por Luis Navarrete em 09/05/2007
Reeditado em 10/05/2007
Código do texto: T481378
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