Rapsódia

Desliguei o telefone, acendi um cigarro e... Uma sinfonia de Lully! Sim, se não me engano era a quare fremuerunt, perfeita para uma noite de sexta-feira chuvosa. Gosto de pensar na idéia dos raios impetuosos do rei sol cravando suas lanças de ouro no seio da terra de meu quintal. Só no meu, que se dane os dos outros! Ao fundo... Num insight, vejo a Avenida Paulista e seus carros “buzinantes”! That’s better! Quanto a meu vizinho, afirmo que cometeu um grande erro: ceifou os galhos floridos de seu castanheiro. Lá ficavam eles escondidos, esquecidos, porém jamais abandonados pela natureza; invadiam meu quintal, erguiam-se impávidos nas tardes de inverno estampando no céu um mapa de veias e artérias contorcidas; mostrando sua glória nos dias de sol com suas flores coloridas que mais pareciam ter sido pintadas por Van Gogh; que tão lindamente contrastavam com o céu cinza destas aprazíveis manhãs nubladas de Atibaia... Com aqueles galhos tudo era mais aprazível. Vez ou outra se juntavam borboletas das mais variadas cores a dar piruetas ao compasso de minuetos delicados, inocentes, solapando o folhame; vinham também os pequenos beija-flores a colher o néctar que as flores deliberadamente cediam em seus cálices exóticos. Isso sem dizer das aprazíveis noites de verão que, por causa do aroma das flores, eram quase shakespearianas... Apesar de minha solidão. Quem tem flores como aquelas não precisa de companhia mesmo. Podem me chamar de misantropo! Resultado: de minha varanda, hoje posso ver tudo que se passa na casa de meu vizinho, mesmo que não queira. Desagradável isso!

Alguém batia a porta; como de costume, não atendi. Não sou dessas pessoas que atendem telefonemas, que abrem as portas, gosto mesmo que meu mundo seja inescrutável, lacrado hermeticamente. Temo que descubram o óbvio: o quão errante sou. Dizem que ser assim confere a mim certa aura enigmática, isso seria até legal se não me tornasse tão desconfiável. É isso! Nunca confie em quem não atende telefones ou em quem faz caretas esdrúxulas quando se vê obrigado a tanto. Sinto fome, já é tarde. Comer... Por que comer? Eu já me enjoei de fazer isso todos os dias. O que me incomoda na condição humana é justamente essa necessidade constante, estes hábitos imutáveis, instintivos. Queria ser um ser cósmico, amorfo, sem consciência, sem moral, algo que não precisasse se alimentar, se reproduzir, se organizar politicamente, trabalhar, escrever... Enfim, sem objetivos e necessidades. Se analisarmos, Alice é que está certa. Está na estrada agora, deve estar passando por, sei lá... Jundiaí? Livre e ávida vislumbra a estrada como um espelho profundo e negro a refletir as sangrentas luzes automotivas em zigue-zague, como mil pirilampos e little fairies representando uma cena de "Sonhos de uma noite de Verão". Penso que a melhor forma para se morrer deve ser num acidente automotivo, de preferência a duzentos quilômetros por hora... Rápido e indolor! Mas há quem prefira a morte através de acidente aéreo. Pois é, nesse planetinha medíocre, onde aviões ainda podem ser confundidos com míticos seres celestes, quem morre em acidente aéreo ganha uma estranha coroa de nobreza, como se fosse um Ícaro pelo simples motivo de morrer no céu e, em alguns casos, carbonizado, ou então é considerado quase mártir da malvada evolução, do capitalismo. Essa é a nossa sociedade!

Quem é que bate à porta de alguém a esta horas da noite? Pedintes, ladrões? Eu sei que não ando com boa memória, mesmo sendo ainda tão novo; minha mãe dirá que isso se dá devido ao excesso de uso do computador, já meu pai colocaria a culpa em Kierkegaard, mas eu me lembro perfeitamente do dia em que Alessandra, trajando um shorts minúsculo, entrou em casa pedindo um copo d’água. Sabe, é necessário focalizar seu pensamento em algo sólido para não esquecer o momento... Alguém já disse isso anteriormente, não? Uhmm... Sim! Virginia Woolf, em... The Mark on the Wall, mas não importa, a idéia se recicla através de minha boca. Essa é a praga da literatura moderna. Tudo que tinha que ser dito, já foi. Ora, até essa constatação é obsoleta! Imagino que os escritores do futuro escreverão algo mais ou menos assim: “Res uo oãn res? Sie a oãtseuq. Oriferp so sorrohcac” (Ser ou não ser? Eis a questão. Prefiro os cachorros). Será o refluxo de consciência! E eu devo-lhes dizer que aquilo... O shorts de Alessandra! Ou melhor, as rombudas pernas que o preenchia, eram sólidas, e como! Ative-me a elas. E eu que pensava ser assexuado! É. Vi no catálogo gastronômico da cidade uma pizzaria que vendia pizza de mussarela de búfala com tomate seco. Penso eu que não há nada mais sem graça no mundo do que ser um tomate seco, seu sabor é furtivo, acessório. Já o que me incomoda com relação a mussarela é que os dedos ficam gordurosos. Lembro-me que sujei as páginas de Ulysses...

O que haverão de pensar então aqueles senhores que, no ano da graça de 2450, contemplarão atônitos este meu insolente relato? Assentados sobre os restolhos da modernidade e ardendo abaixo de um céu aberto certamente comentarão entre si: “aquilo sim era vida! Ha, posso imaginar o quão divino era ouvir a sinfonia infernal dos carros numa manhã paulistana” – Notem o termo “sinfonia”. Sinta a alma poética que os anacrônicos do futuro haverão de empregar a nossos dias. O passado, com sua carga natural de melancolia, sempre tingido em preto e branco ou, no máximo, em sépia, nos faz crer que a vida era mais aconchegante, mais bonitinha, porém, mais inglória. O presente nunca é satisfatório, o futuro não é nada além da continuação do agora, porém com agravantes, muito embora a esperança, essa senhora raquítica e acamada, nos diga o contrário.

Não mais suportando as pancadas continuas e já irascíveis em minha porta (a pele de madeira que nos separa do mundo), decidi abrir, mas primeiro olhei pelo vão, por onde o vento secava minha retina...

Ora, vejam só: era apenas o entregador de pizzas!

Otto M
Enviado por Otto M em 11/05/2007
Reeditado em 29/04/2010
Código do texto: T483663
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.