Alguns bons amigos

Finalmente termino meu bendito almoço. Fiquei três meses sobrevivendo a base de miojo fiado. Miojo de galinha, miojo de carne, calabresa, quatro queijos… Todos eles tem o sempre mesmo sabor… Arroz, frango empanado e salada, bem básico. Podemos considerar como refeição

descente qualquer coisa diferente de miojo. Pensando bem, o termo “qualquer coisa” empregado em conotação gastronômica tende a tomar proporções catastróficas, resumindo: é bem melhor comer miojo do que escorpião ou cobra ou macaco ou rato ou minhoca ou sei la o quê mais…

Porra! Tem muita cebola nesse arroz. A minha vó temperava com apenas dois dentes de alho e duas pitadas de sal. Preguiça de descascar o alho? Acertou! Eu sei que existe algum truque que desconheço. Você conhece? Conte-me mais… Descascar cebola também não é nada prático, porém, pelo menos pra mim é mais fácil do que descascar alho… Eu quero essas cebolas, diz um sujeito com bigodes enormes. Claro, fique com elas, retruco. O desgraçado detona as cebolas e nem se oferece pra lavar um garfo. Possui um sotaque

estranho, mistura espanhol com inglês. Converso um pouco com o sujeito enquanto lavo a louça. Ele é de algum lugar onde ficava a extinta Iugoslávia. Trabalha de barman aqui perto. Rodou a américa do sul quase toda e de alguma forma veio parar em São Paulo. Não quero

conhecer o Rio, diz ele. Retruco dizendo que o sonho de todo gringo é conhecer o Rio. Ele diz que não quer conhecer o Rio, nem chegar perto. Pode me chamar de Mirvano, ou bigode, o pessoal do trabalho me chama de bigode. Tudo bem, bigode, mas saiba você que o Rio de

Janeiro está aqui do lado… Descanso um pouco e por pouco não me atraso. O foda de não possuir celular é que a probabilidade de chegar atrasado nos lugares é altíssima. Meu relógio parou. Ok, eu não precisava ter escrito isso… São 04:00 e Bigode aparece de

veneta. Ofereço-lhe uma skol e o sujeito rejeita pedindo uma itaipava. Só pode ser maluco. Vamos fumar um cigarro, Cris? Lucky stryke. Veja você que cara esperto eu sou, estou presenciando um monólogo inteiramente gratuito! Tenho a impressão de que jamais irá parar de

falar… É hora de preparar o café da manhã. Bigode está faminto, sempre está, só possui dinheiro para comprar cigarros e viajar por aí. Eu deveria fazer o mesmo, ando torrando minha grana com coisas inúteis e supérfluas. Cris, eu preciso de una chica. Mastigando um pedaço de pão, ele me pergunta onde é o banheiro. Volta a repetir que precisa de una chica. Todos nós precisamos, retruco. Não, cara, é sério, eu preciso de uma mulher urgente, é estranho, pois nunca me senti tão atrativo, acho que no Brasil as mulheres gostam de caras

estranhos. Porra, Bigode, se você tá se achando o tal porque não arrasta umas? Sei lá, Cris, sou muito tímido. Tímido? Vai tomar no cu! Você trabalha numa boate, mano. Tem noção do que é trampar numa boate paulistana? É só oferecer alguns drinks e já era. Olha só esse teu

bigode, parece o Salvador Dalí, você é descolado, mano. Quanto tempo você está lá? Uma semana? Vish, vai chover mulher! É só uma questão de tempo. E não se esqueça dos amigos… Fico duas semanas sem encontrar Mirvano, até o exato momento em que resolve aparecer do nada na calada da madrugada. Pergunta se pode dar uma cagada. Entrego-lhe um “bom ar” e digo para não economizar no mesmo. Ele me aparece após uns cinco minutos. Fast shit hein, Bigode! Ele

diz que foi menos de cinco minutos e pede uma cerveja. Itaipava. Oferece-me um lucky strike. Vamos fumar. Ele está cansado, está falando menos, mas isso não significa que esteja falando pouco. Não há brecha para eu pronunciar uma única palavra, sou um bom ouvinte. Ele

finalmente termina seu monólogo e resolve deitar na rede. Preparo o café e quando vejo já são 07:00. Meu patrão pergunta quem é o folgado deitado na rede. É um brother meu! Ele me diz para fazer ele ir embora. Sacudo um pouco a rede e Bigode acorda. Está péssimo…

Meu patrão resolve proibir as visitas de Bigode, só eu sei disso… Após uns bons três meses, eis que a campainha toca as duas e quarenta da madrugada. Um casal de lésbicas gringas. MANEIRO! Elas estão no banheiro, escuto alguns gemidos. Observo sorrateiramente através da fechadura. Um oral fascinante. PLEIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIM! Novamente a campainha. Bigode. Não há problemas, afial de contas é bem improvável que meu chefe acorde numa hora dessas. Vou te dar um conselho, JAMAIS cometa o erro de trabalhar e morar com seus chefes.

Deixo ele entrar. Está pior do que nunca, fedendo, as roupas imundas e a barba por fazer. Parece um mendigo. O que houve contigo? Estou sem dinheiro, Cris. Empresto-lhe dez reais, a única coisa que tenho. Ele me chama pra sair. Estou trabalhando, Bigode. Resolve ir embora.

Deve estar dormindo na rua há meses, está magro, coitado. Fico com pena e resolvo tomar algumas com ele. Abro o armário e retiro dois pães e faço um sanduba com um pouco de salsicha que sobrou de ontem e corto um pedaço de bolo pra mim. Ele devora tudo em quatro

mordidas. Por fim, fumamos um cigarro e ele vai embora, pra onde eu não sei… Você já conheceu algum argentino legal? Eu posso dizer que sim… Sejamos sinceros, “legal” não é muito bem a palavra certa, mas no momento não consigo lembrar de nenhuma outra palavra que se encaixe ao contexto, enfim. Ele se chama Maurício, está sentado em seu lugar cativo. Seu notebook ligado. Trabalha com vendas. Compra e vende tudo aquilo que possivelmente lhe traga algum lucro. Levanta e me pede uma heineken. Toda dia ele detona várias, e quando o patrão não está por perto nós formamos uma dupla mais que dinâmica. Fala português melhor do que vários brasileiros. Morou dez anos em São Paulo. Não sei muito bem ao certo o porquê e quando ele resolveu estabelecer morada por essas terras, de qualquer forma ficou casado durante todo esse período e decidiu que isso não era vida pra ele. Hoje em dia possui

qualquer mulher em qualquer lugar. Não é um cara de raízes, é um bom negociante, um vencedor, e os vencedores jamais se apegam a pessoas ou lugares. Sozinho dentre a multidão, possui e não possui amigos, o caminho de um vencedor é um caminho solitário. Combinamos de

tomar algumas após meu expediente. Agora são exatamente 22:22 então faltam menos de uma hora pra acabar isso aqui. Ando traumatizado de mulheres. Eu me apaixono muito fácil e você sabe

muito bem qual o destino dos apaixonados. Hora de contar o caixa. Trabalho chato. Finalizado. Chove um pouco mas resolvo não levar guarda-chuva. Nosso passeio não da muito certo pois os bares estão todos fechados. Vamos beber no hostel, sugiro. A chuva aperta e

regressamos a ´passos largos. Seis latas de brahma é um bom começo. Acendo um cigarro e tento fazer com que a fumaça tome direção oposta a do meu camarada. Explico-lhe sobre meus sonhos. Tédio. Sonho em viver de arte. É melhor você se ligar, Cris, ninguém vive só de

sonhos, eu sempre te vejo largado devorando um cigarro atrás do outro, você não está correndo atrás de seus objetivos. A vida não é de brincadeira, amigo. Você está desperdiçando um dos seus maiores bens, você está perdendo tempo… Ele está certo. Vivo coçando o saco e esperando algum milagre inesperado acontecer. Estou aqui há sete meses e não fui capaz de juntar um tostão furado. Que tipo de idiota eu sou? É melhor não pensar nisso. Tentarei produzir alguma coisa… Que bom não trabalhar mais de madrugada… Os dias seguem iguais, Maurício tem muita coisa a me ensinar e talvez eu também tenha muita coisa a

lhe ensinar. Amanhã ele completa 36 anos. Parabéns, Maurício! Bom, agora são 21:32 de 20 de Junho de 2014 e me lembro como se fosse ontem das últimas palavras que Maurício me disse… Vai voltar pro Rio? Vai fazer o que lá? Viver de praia? Pensa bem nessa tua decisão, pelo

menos aqui você tem um emprego e um teto. Mude essa postura, a sua depressão é nítida. Faça a barba e penteie esses cabelos. Tronco ereto! Escuta, você ainda não foi pro Rio, você ainda está aqui…

Ele só me deu bons conselhos. Eu já fiz muita merda nessa vida e acabei decepcionando várias pessoas (inclusive a mim mesmo), algumas delas nem sequer olham no meu rosto. Com Maurício a coisa continua a mesma, conversamos bastante e ele continua dando conselhos. Acho que ele é assim com todo mundo. Hoje em dia a preguiça e a melancolia ainda ocupam algum espaço do meu eu, mas sinto que produzo muito mais do que antigamente (ciente de que quantidade jamais supera qualidade). De qualquer forma, eu continuo aqui e você aí. Não é mesmo, Maurício?

cristiano rufino
Enviado por cristiano rufino em 21/06/2014
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