POR UM CACHORRO-QUENTE

POR UM CACHORRO-QUENTE

Marcos tentou abrir os olhos e descobriu que estavam vendados. Tentou tocar na cabeça, que doía bastante, e percebeu que suas mãos estavam atadas às costas. Estremeceu de frio e de medo e tentou se lembrar do que acontecera antes de haver desmaiado.

Lembrava-se de que estava saindo de seu consultório médico, chegara na garagem do prédio onde trabalhava, no centro de Porto Alegre, pegara a chave para abrir a porta do carro, sentira uma forte pancada na cabeça, e depois não se recordava de mais nada.

De repente, ouviu várias vozes. Percebeu que uma porta se abria e que pessoas entravam na peça onde ele estava. Alguém acendeu uma luz. Súbito, sentiu um chute em suas costelas e soltou um gemido.

– Ele já acordou – disse uma voz masculina.

– Ótimo – respondeu outra. – Pega o telefone dele. Vamos ligar para os parentes.

“Meu Deus”, pensou Marcos, assustado. Estava começando a perceber que fora vítima de um seqüestro...

– Alô – disse um dos homens. – É um parente do Dr. Marcos Bassani? Ah, é o irmão dele. Bom, muito bom.

Marcos estremeceu. Seu irmão, aliás, seu meio-irmão, Júlio, não era a pessoa em que mais confiava nesse mundo. Mas era a única pessoa que se lembrara de colocar na agenda, naquele espaço em que diz “em caso de emergência, avisar”.

– Nós estamos com o teu irmão, cara – continuou o bandido. – Isso, é um seqüestro. Não acredita? Ora, tu estás vendo que nós estamos ligando do celular dele. Nós queremos cinqüenta mil reais. Isso. Sei que, para gente como vocês, não é difícil de conseguir.

Marcos sentiu suas artérias latejarem. Podia imaginar, quase podia ouvir Júlio argumentando, dizendo que não tinha, coisa assim. E podia imaginar a raiva do seqüestrador crescendo. Júlio falava manso, tinha um tom de voz naturalmente irritante. E, se algo lhe acontecesse, Júlio era seu único herdeiro...

– Tá legal, cara – disse o seqüestrador, irritado. – Dá uma ouvida nisso.

Então, Marcos sentiu uma forte pancada no estômago, provavelmente com a utilização de um objeto de metal. “Cristo!”, pensou, gemendo. Outros golpes se sucederam. Um deles o atingiu num braço com tanta força que pensou que havia quebrado o osso. Gritou de dor.

– Estás ouvindo? perguntou o bandido. – Nós estamos batendo nele com um cano de ferro. Ah, queres ter certeza de que é ele? Tudo bem.

Colocou o telefone celular no rosto de Marcos e lhe ordenou:

– Dá um alô pro teu mano.

Marcos respirou fundo.

– Júlio – disse –, sou eu mesmo. Paga o que os caras estão pedindo.

– Não vou colaborar com bandidos – respondeu Júlio, com voz fria.

– Pelo amor de Deus, Júlio! Eles vão me matar!...

– Ora – argumentou Júlio –, não te preocupes. Vou chamar a polícia e tudo vai dar certo. Mas não vou dar dinheiro para esses caras comprarem mais armas e seqüestrarem mais gente.

E desligou o telefone, deixando Marcos aterrorizado.

– Apaga logo o cara, chefe – disse um dos bandidos. – O irmão não vai liberar a grana.

– Calma – respondeu a voz do homem que estivera ao telefone. – Vamos dar um tempo para ele pensar.

Marcos ouviu os homens saírem da peça e se encolheu num canto. Sentia um gosto de sangue na boca. O frio intenso o torturava. Na véspera, quando estava saindo do consultório, fazia calor, e estava em mangas de camisa, carregando o paletó – que com certeza ficara caído no chão da garagem –, quando pegara a chave para entrar no carro. Mas aquele lugar era o Rio Grande do Sul. Podia ser um ótimo lugar, o melhor do mundo na opinião de muita gente, inclusive na sua, mas tinha um defeito: num dia, fazia trinta graus celsius; no dia seguinte, uma frente fria poderia fazer com que a temperatura despencasse para cinco graus, ou menos. E com certeza era o que havia acontecido. Estava assustado demais para sentir fome, mas a sede começava a incomodá-lo. Então, toda a sua vida começou a passar em sua mente, como se fosse um filme.

Sua infância não fora exatamente maravilhosa. Perdera a mãe muito cedo, e o pai se casara de novo, com uma mulher que, se não o odiava, era-lhe totalmente indiferente. Fora uma criança tímida e introvertida. Quando nascera seu irmão, sentira-se ainda mais rejeitado. Mas apegara-se aos estudos. Embora não tivesse nenhum dom especial para declamar poemas ou ser popular na escola, como Júlio, suas boas notas haviam conquistado a simpatia dos professores e o respeito de seu pai. E a inveja daquele vagabundo do seu irmão...

Fora um adolescente ainda mais quieto do que quando criança. Muito cedo, entrara para a Faculdade de Medicina. Lembrava-se com saudade daquele tempo em que embalava sonhos e mais sonhos, embora tivesse sido bem difícil. O pai o mandara para a capital e lhe enviava um dinheiro que mal pagava os livros que tinha de comprar. Morava numa quitinete fria e úmida, e volta e meia passava fome. Mas a ânsia de se formar logo, de começar a clinicar, de ajudar as pessoas e de ganhar dinheiro honestamente o mantivera com os olhos fixos em seus objetivos. Não se lembrava de ter ido a festas mais do que três ou quatro vezes durante todo o tempo em que fizera a faculdade. Especializara-se em traumatologia pediátrica, e finalmente conseguira abrir seu consultório. Estudara mais, tornara-se cirurgião. As crianças o adoravam, por incrível que parecesse – achava difícil chegar uma criança em sua frente, berrando de dor, com um braço ou uma perna quebrada, que acabasse gostando do médico que reduzisse a fratura e colocasse o osso no lugar, e ainda por cima o devolvesse à família com o membro fraturado parecendo o de uma múmia. Mas ele as tratava com carinho, fazia brincadeiras, escrevia no gesso, e as crianças acabavam se apaixonando por ele. Quando tinha de operar, fazia tudo parecer uma divertida brincadeira. Às vezes, ficava imaginando como seria quando tivesse filhos.

Tivera algumas namoradas, mas nenhuma ficara muito tempo com ele. Achavam-no envolvido demais com o estudo, e, depois, com o trabalho. Reclamavam que era muito pouco romântico. E ele sabia que, no fundo, não era – quando encontrasse a companheira ideal, saberia tratá-la como uma rainha, saberia fazê-la a mulher mais feliz deste mundo.

Mas agora estava começando a parecer que iria morrer sem encontrá-la, sem ter filhos, sem ao menos comprar o carro que vinha cobiçando há alguns meses, que deixara de comprar no ano anterior porque preferira investir num novo equipamento de raio-X, mas que vinha juntando dinheiro para comprar com bastante ansiedade...

As horas foram-se passando, parecendo arrastar-se. Marcos sentia cada vez mais frio. Seu estômago roncava de fome. Sua garganta estava seca. A posição forçada dos braços causava-lhe dores. Um terror cada vez maior o angustiava. Começou a rezar para que, de alguma maneira, Júlio resolvesse pagar o tal resgate. Queria viver, queria muito viver. Mas, naquele momento, o que mais queria era sair daquela situação horrível, tomar um banho quente, enfiar-se nalguma roupa de lã, comer, tomar um litro d’água, ir ao banheiro, movimentar os braços, sentir-se seguro, meu Deus, seguro de novo, sem aquela horrível sensação de morte iminente que o fazia se desesperar cada vez mais...

Não soube dizer quanto tempo se passara. Talvez mais de um dia. Finalmente, a porta se abriu e os homens entraram de novo, acendendo a luz. E rindo – para aumentar sua angústia, rindo de uma forma assustadora, como se estivessem prestes a verem seus desejos mais sádicos serem realizados...

– Teu irmão é duro na queda – disse a voz do homem que parecia ser o líder do grupo. – Acho que não vai ter jeito.

Marcos engoliu em seco e encolheu-se um pouco mais.

– O que a gente vai fazer com o corpo? perguntou um dos homens.

– Bem, ou a gente joga num matagal, ou desova no Guaíba, ou toca fogo – respondeu outro.

– Eu voto por tocar fogo – respondeu outra voz. – Com ele vivo.

Marcos estremeceu e prendeu a respiração, aterrorizado.

– Calma – disse o líder do grupo. – Também não é para tanto.

Então, Marcos sentiu o cano de um revólver ser encostado em sua têmpora.

– Espera! gritou. – Pelo menos, me deixa rezar!

O bandido paralisou-se por um momento.

– Tu acreditas em Deus? perguntou.

– Acredito – respondeu Marcos.

Subitamente, o bandido tirou a venda de seus olhos. Marcos o encarou, assustado. O criminoso agarrou seu rosto e voltou-o na direção da luz. O seqüestrador tinha uma fisionomia bastante sofrida. Grandes rugas sulcavam sua face. Tinha olhos fundos, sua pele era amarelada e parecia padecer de alguma enfermidade, provavelmente algum problema no fígado. Marcos percebeu que ele examinava atentamente seu rosto e perguntou-se se o conhecia de algum lugar. Mas não conseguia se lembrar de nenhum traço daquele homem. Por algum motivo, não se atreveu a olhar em volta, para os outros criminosos, embora sua visão periférica pudesse distinguir mais três vultos na peça.

– Fecha os olhos – disse o seqüestrador. Marcos obedeceu. – Tu ai, bota a venda nele de novo.

O outro bandido o vendou novamente.

– Vamos dar mais vinte e quatro horas para o irmão dele – disse o líder.

– Mas, chefe...

– Quem manda aqui sou eu – respondeu o bandido.

Marcos percebeu que eles apagavam a luz e saíam da peça. Respirou profundamente. Tentou se lembrar de alguma coisa que lhe desse alguma esperança, de alguma possibilidade de haver conhecido aquele cara, talvez houvesse sido seu paciente... Mas atendera tanta gente pelo SUS quando fazia residência que não tinha como se lembrar...

Algum tempo depois, a porta se abriu, a luz foi acesa e a venda foi novamente retirada de seus olhos. Apenas o líder do grupo entrara na peça. Ele cravou-lhe os olhos e Marcos estremeceu.

– Tu moravas naquela travessa perto do Viaduto da Borges – disse o criminoso.

– Como? perguntou Marcos.

– Aquela travessinha perto do viaduto. Eu me lembro bem de ti. Já faz tempo, mas eu nunca me esqueço de um rosto. Era uma noite muito fria, eu não tinha mais dinheiro para comprar a minha cachaça. Acontece que eu nem tinha percebido, mas, no fundo, também estava com fome...

Subitamente, Marcos compreendeu do que o outro estava lhe falando.

Acontecera quando ele cursava o último ano de Medicina. Saíra da faculdade e estava chegando no prédio em que morava. Não tinha absolutamente nada para comer em casa. Gastara sua última moeda com um cachorro-quente, e ainda ficara devendo cinqüenta centavos para o homem da carrocinha.

Então, enxergara aquela figura encolhida na calçada, que lhe estendera a mão:

– Dá um dinheiro aí, cara.

– Não tenho.

– Ah, bacana, é claro que tu tem.

Marcos o olhara com pena. Após alguns instantes de hesitação, estendera-lhe o cachorro-quente.

– Toma – disse. – É só o que eu posso te dar.

– Qual é, bacana? Solta a grana duma vez! Eu sei que tu tem aí!...

Marcos encolhera-se um pouco, assustado, mas insistira em estender-lhe o lanche.

– Desculpa, mas eu realmente não tenho nada nos bolsos. A única coisa que eu tenho para te dar é isso aqui. Aceita, por favor. Acho que deves estar com mais fome do que eu.

O homem se levantara. Marcos sentira um arrepio percorrer-lhe o corpo. O sujeito tomara-lhe o cachorro-quente das mãos, com um gesto brusco.

– Da próxima vez, é bom tu ter grana, viu? dissera. – Se eu não conseguir trocar por canha, isso aqui não vai me servir pra nada!

Marcos se irritara.

– Escuta, amigo, é a única coisa que eu tinha para comer hoje. Mas está bem, fica com ele. Agora, se não for para comer, então enfia onde quiseres!...

– Ah, meu Deus – murmurou Marcos. – O que eu te mandei fazer com o cachorro-quente!... Tu vais me matar, mesmo, não vais?...

– Vou não, cara. Eu acabei comendo aquilo, mesmo. E tava bom.

Marcos respirou fundo. O bandido recolocou a venda em seus olhos.

– Levanta – disse.

Marcos levantou-se com dificuldade. Todo o corpo lhe doía. O bandido o agarrou por um braço e arrastou-o até um carro. O seqüestrador dirigiu por um bom tempo. Finalmente, parou o carro e o arrastou para fora.

– Se tu procurares a polícia, eu juro que vou atrás de ti, cara – disse o criminoso.

– Não te preocupes – respondeu Marcos.

O homem o empurrou. Marcos caiu de bruços e o ouviu arrancar o carro. Ainda tinha os olhos vendados e as mãos atadas às costas, e ficou se perguntando se não estava no meio de alguma avenida movimentada, onde a morte lhe chegaria na forma de um atropelamento. Mas, após alguns minutos, ouviu uma voz amistosa. Alguém o desamarrou e lhe tirou a venda. Estava numa calçada, e um homem o estava socorrendo. Era noite.

– O senhor está bem? perguntou o homem.

– Estou, obrigado.

– Precisa de alguma coisa?

– Não, obrigado. Que horas são?

– São umas oito horas.

– E que dia é hoje?

– Quarta-feira.

Marcos suspirou. Dois dias em poder dos seqüestradores. Parecia que havia sido muito mais!...

– Está bem, obrigado – disse, remexendo os braços, alongando-os, sentindo a circulação voltar e a dor estender-se ao longo de seus músculos.

– O senhor não precisa de alguma coisa? Não quer que o leve ao hospital?

– Não, obrigado. Valeu. Deus te pague.

Caminhou lentamente para casa. Agora, morava num apartamento bem maior, num prédio do centro. Quando chegou, o porteiro veio-lhe ao encontro.

– Dr. Marcos! Graças a Deus! Eu estava preocupado...

– Está tudo bem, Cláudio. – Levou a mão à cabeça. – Sabes aquela chave reserva do meu apartamento, que eu deixo contigo?

– Está à mão, Dr. Marcos.

Marcos sentiu uma tontura.

– Cláudio, ajuda-me a chegar lá em cima.

O porteiro o amparou e o levou até seu apartamento. Marcos agradeceu, trancou-se e abriu a geladeira. Atacou vorazmente o arroz e a galinha assada que encontrou, sem dar-se ao trabalho de aquecê-los, e tomou toda a água que havia na jarra. Depois, foi ao banheiro e tomou um banho demorado. A água quente parecia devolver-lhe a vida. Por fim, vestiu uma cueca e enfiou-se embaixo dos cobertores. A exaustão o dominou, e logo adormeceu.

De repente, ouviu um barulho na fechadura da porta da frente. Levantou-se de um salto e vestiu um roupão. A primeira coisa em que pensou foi na possibilidade de os bandidos estarem de volta, terem localizado seu apartamento... Com o coração aos pulos, aproximou-se lentamente da sala. Percebeu que já era dia. Encostou-se à parede, perto da porta da entrada, perguntando-se o que faria, procurando alguma arma com que pudesse se defender.

– Mas bah, até que foi fácil – disse uma voz, do outro lado.

– Ótimo. Vamos ver o que tem aí dentro.

Marcos reconheceu a voz de Júlio.

– Ei – disse, indignado –, o que tu estás fazendo aqui?

Ao vê-lo, Júlio recuou dois passos, como se estivesse vendo um fantasma.

– Marcos? murmurou.

– Em carne e osso.

Olhou para o homem que o acompanhava. Percebeu, pela maleta que ele carregava, que se tratava de um chaveiro. Pelo visto, o irmão já o estava dando por morto.

– Tu não perdes tempo, hem? perguntou, irritado.

– Que é isso, Marcos? respondeu Júlio, abraçando-o. – Fico feliz em ver que estás bem. Como conseguiste escapar?

Marcos o afastou e suspirou profundamente.

– Para ti, minha vida pode não valer cinqüenta mil reais – respondeu. – Mas, para o bandido, ao menos valia um cachorro-quente.

– Como assim? perguntou Júlio, olhando-o, intrigado.

Marcos o encarou de volta, com repulsa.

– Bem, já viste que o dono desse apartamento ainda está vivo – respondeu. – O porteiro não te avisou?

– Não.

Marcos lembrou-se de que o prédio trocava de porteiro às sete horas da manhã.

– Acontece que agora já sabes. – Olhou para o chaveiro. – Moço, faça o favor de deixar a fechadura como estava. Não se preocupe, eu vou lhe pagar por todo esse incômodo. E tu – olhou para Júlio –, faz o favor de ir para a tua casa. Preciso ficar sozinho.

Júlio obedeceu. Marcos arrastou-se até o sofá da sala e desabou sobre ele, pensando que só voltaria a se sentir seguro novamente no momento em que fizesse um testamento que impedisse que aquele sujeitinho continuasse sendo seu único herdeiro...

MAIO DE 2007

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 14/05/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T486491