Memórias vagas

Parece que a noite chegara mais cedo do que se esperava. Vinham frementes as pequenas tremidas na parte interior dos olhos causando relampejos de luzes e matizes disformes. Ao mesmo tempo sentia um desconforto nas costas e um agradável odor de gramas frescas. Aguilhoava na cabeça no plano subconsciente algo que tinha de ser feito. Os braços não correspondiam à vontade que tinha de lutar. Tentou abrir os olhos. Ouviu pássaros se agitarem sobre as árvores. Os filhotes faziam ruídos de fome. Mas o corpo estava pesado demais para obedecer e confirmar os sentidos. As pernas não se moviam. Havia, no entanto súbitos espasmos musculares. A posição em que se encontrava era relevante. Estava escuro e difícil achar a saída. Em um vago momento seus sentidos foram inibidos com faixas de luzes coloridas. Neste ínterim, a visão desnorteada pelo clarão dava lugar a zumbidos incômodos, repetidos.

O som era distante e vago. O que poderia ser? Gradualmente aumentando. Talvez seja a campanhinha do portão. Está ficando irritante. Não! É o telefone! Alguém atenda! Ninguém iria atender porque a casa estava vazia. Rolou de um lado para o outro. Meteu a mão nos frascos de remédios que estava na mesinha de cabeceira. Achou o telefone.

— A-alô! Sim sou eu... Está tudo bem?... Ei! O que ta dizendo?! Não faça isto! Cadê a Lívia? ... Esp... Estou indo! Não desligue!

Tentou ligar. Não atendia. Continuou Insistindo com o telefone. Que na verdade não era. Porque no tocante à realidade, nem percebeu um pedaço de graveto seco que levou ao ouvido. Com os olhos ainda em silêncio franziu as sobrancelhas na dúvida de onde estava. Mas aos poucos a sobriedade o fez cair em si. Reconheceu o quarto que era seu. Só não entendia o porquê dormia no chão. E as costas estavam geladas. Levantou-se e vestiu uma roupa qualquer.

Desceu correndo as escadas e passou as pressas pela sala. Deu-se conta que era um tanto estranho estar correndo daquele jeito. Mas só pensava na situação que já deveria ter sido resolvida. Para que não culminasse ao ponto. Talvez não seja nada. Como das outras vezes. Correu. Mas, sem a habilidade necessária tropeçou no tapete e bateu a cabeça na coluna de sustentação da sala e desmaiou. A dor era terrível. Passava a sensação que estava dormindo em outro lugar.

Já em um apartamento do outro lado da cidade um homem colocava o telefone no gancho. Ele agora admirava com os olhos do passado pela grande janela que emoldurava o mar. Era uma visão maravilhosa! Mas para quem enxergava em cores. Porque para aquele homem tudo tinha gosto acinzentado.

As ondas estavam bravas com a praia. Ainda assim havia muita gente. O telefone tocava impaciente. Até que se cansou de gritá-lo. Desalento, moribundo ele continuava olhar por longo tempo a movimentação da rua. Os banhistas, as crianças correndo de um lado para o outro e um ciclista. Uma bela mulher vinha esbaforida lá embaixo na calçada. Ela se aproximava. Achou que ela iria entrar no prédio. E ele entendia o que ela foi tentar fazer. Afastou para o lado a cortina azul. A foto gemia ao conhecer o ódio da mão. O homem queria gritá-la, mas daquela distância não o ouviria. Não era momento para arrependimentos aquela altura. Talvez por isso ele estivesse demorando a fazer o que tinha de fazer.

Lá fora alguém que não tem plena certeza de como chegara ali reconhece o lugar. Em dificuldades em se locomover vê as árvores balançando com a estupidez do vento. Os papéis estão sendo varridos da calçada. Ele olha para o alto. É o quarto andar. As cortinas estão agitadas chicoteando os vidros fumês lá em cima. Atravessa a garagem e sobe as escadas. É o andar certo e o número é o cinco. Vai até a porta do quarto. Tudo parece calmo demais. Como a calmaria da morte. MORTE!

Então assustado, o homem se levanta do chão da sala. Olha aos lados e vê o sangue. Passa a mão na cabeça e olha a palma avermelhada. Levanta-se cambaleando. Quando sai pela porta da sala entra no jardim com gramado extenso. Vai caminhando com a mão na cabeça dolorida. Olha para as árvores frondosas. Uma figura dorme embaixo deitado no gramado. Mas ao checar quem era, assusta-se despudoradamente consigo mesmo. Era ele mesmo deitado ali. Não conseguia nem imaginar como isto seria possível. Entende muito menos ao ver uma cadeira de rodas caída do lado. Qual a explicação plausível para aquela anomalia? Talvez ainda estivesse em pleno sono. Mas como se estava sentindo dor e o sangue era tão real?

Sentindo a calmaria da morte, o homem bate na porta umas três ou quatro vezes. Um cachorrinho bufando por baixo da porta ao lado late sem parar. O homem bate mais forte e ninguém atende. A preocupação aumenta. O cachorro late. Bate mais forte e chama pelo nome. Esmurra a porta. Em vão. Só lhe resta chutar. Pronto! Lá se foi à fechadura. Ninguém na sala, nos quartos... Na cozinha havia um copo com café até a metade. Alguns cigarros amontoados na bancada de granito. A cadeira jogada ao chão. Tinha uma porta menor ao lado que era a do banheiro. Entrou no banheiro. Estava limpo e com aroma de flores. Olhou os detalhes e o vaso sanitário chamou-lhe a atenção. A tampa higiênica estava abaixava levando a crer que uma mulher havia-o usado. Mas, além disso, não achou mais nada estranho. Lembrou-se de verificar se tinha uma sacada. Tinha. A porta de vidro incolor estava entreaberta. Apressou-se a olhar pela janela e ficou pasmo. Ficou roxo. Saiu correndo em círculos pela casa. Apertou com veemência a cabeça dolorida e quase enlouqueceu. Gritava e se debatia. Os olhos tomaram grandes proporções e se avermelharam. Subiu na mureta para verificar e escorregou. Assim que começou a cair sentiu um frio terrível na espinha. E tomou um choque.

E em choque com grande sobressalto a figura de homem que estava sob a árvore frondosa se levantou. E olhando ao seu redor não havia um clone seu em pé ali o observando. Todas as lembranças se firmaram com formigas picando seu corpo. Olhou aos lados e entendeu. Arrastou-se até a cadeira apoiando com a mão esquerda. Desvirou-a e se contorceu todo para se sentar. Com muita dificuldade e as mãos doloridas de friccionar as rodas da cadeira foi rodando. Sentiu fortes dores na cabeça. De uma coisa estava certo: que caíra e sofrera alguma pancada na cabeça. Então se lembrou o que estava tentando fazer quando descia as pressas e perdeu o controle na rampa. Na verdade, por um telefonema.

Locomoveu-se até o ponto de ônibus. Chegou até a praia. O calor estremecia a visão e não havia nenhuma nuvem no céu. Atravessava o calçadão da praia quando viu um aglomerado de pessoas na calçada e quando chegou perto ficou desnorteado.

A mulher veio chorando e soluçando em sua direção. Mal tinha fôlego para falar.

— E-eu tentei Marcos! Eu fiz de tudo! Mas não consegui evitar... Ele me expulsou de lá.

— Tudo bem Lívia... Não foi sua culpa.

— E-eu... E-ele fez isso na minha frente! Ele me ligou...

— Eu sei. Ele ligou antes para todos nós...

Geovani Silva
Enviado por Geovani Silva em 03/08/2014
Código do texto: T4907464
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