O borra botas

O BORRA BOTAS

Seu nome era Evair. Nascera em Belo Horizonte. Nunca teve qualquer apreço por coisa alguma que não fosse dinheiro. Não era um homem de gostos diversos. Tinha apenas uma grande paixão, o dinheiro, e a ele dedicava sua existência. Amava o vil metal e era esta paixão que fazia sua vida ter sentido. Mas nunca tivera dinheiro suficiente pra saciar sua gana.Sempre fora pobre vindo de família pobre. Nem mesmo uma herança, por mais insignificante que fosse, jamais engordara sua conta bancaria.

Para satisfazer sua paixão e vicio, julgou que a única solução possível seria orbitar o poder e os poderosos. Aprendeu cedo que para estar nestas cercanias, algumas qualidades eram imprescindíveis. Mediocridade, covardia e subserviência eram as que menos esforços lhe trariam, pois eram inatas na sua personalidade.

Alem destes atributos, Evair tinha uma carência providencial: sua total falta de caráter. Conseguia ser tão arrogante com os humildes como estava sempre disposto a ser humilhado pelos poderosos.

Com tais predicados conseguiu um emprego em uma empresa de terceirização de serviços, e logo acabou casando-se com a filha velha e encalhada do dono da empresa. O inconveniente era que a mulherzinha era amarga e tão feia, que um acidente envolvendo uma motocicleta e uma locomotiva da rede ferroviária, traria efeitos visuais mais agradáveis. Mas ele também não era belo. Detestava a mulher e o sogro. Vivia entre o dinheiro e as humilhações do sogro e a presença desagradável da mulher.

Apesar de tudo gostava de trabalhar. Adorava participar de licitações fraudulentas, onde concessões de serviços públicos passavam para as mãos da iniciativa privada por preços irrisórios. Adorava saber que o Auxiliar de Serviços Gerais, que acabara de contratar para prestar serviços na sede da prefeitura municipal, receberia apenas uma terça parte do valor devido, se fosse contratado diretamente pelo município. E o que era melhor, os dois terços restantes – descontados as propinas e molha mãos – viriam para o seu bolso.

Um dia no trabalho, seu sogro o chamou como de costume, para uma reunião em seu gabinete. Não gostava do sogro, e não gostava da forma como era “convidado” a participar de tais reuniões. Desprezando a telefonia interna, o desgraçado saia de sua sala e berrava a plenos pulmões: “Evair, verme rastejante! Venha à minha sala agora mesmo... Tenho um trabalho para você. Ou achas que esta aqui apenas para comer minha filha. Se é que ainda tens coragem de trepar com aquela... Jaburu Gangorra”.

Estes acontecimentos causavam reações diversas nos demais funcionários.Uma secretaria com óculos de lentes grossas, equilibrado em um nariz curvo e fino, tremia e chorava baixinho, enquanto outros se esforçavam para segurar o riso. Um continuo saiu apresado para poder gargalhar livremente no corredor.

Evair atravessou o escritório num andar rápido e desequilibrado, com o olhar fixo no chão. Parou em frente à porta da diretoria e disse, humilde: “Posso entrar pape?”. Uma cara gorda e enorme surgiu emoldurada pelos marcos da porta, num afresco grotesco, pintado por um Rafael sem inspiração: “Pape. Ora... Entre canalha”.E se dirigindo para os demais. “Vejam o boçal que eu e vocês temos que aturar... tudo por causa de uma filha”.

Sentado em frente à mesa do sogro, ainda podia sentir os olhares de escárnio que chegavam ate ele, através das divisórias transparentes. Quando o maldito velho morresse, aquela secretaria histérica teria reais motivos para chorar, quanto aquele continuo...Era melhor que já começasse a procurar outro emprego.

Foi informado pelo velho, que deveria participar de uma reunião de assinatura de contrato na sede do governo estadual às dezesseis horas, e que não deveria voltar sem o tal contrato assinado. Eram quinze e trinta. “Maldito”, pensou. Não era possível se deslocar de onde estava no bairro Caiçara ate o palácio da liberdade em trinta minutos. Sabia que se não executasse a tarefa, seria alvo de outra humilhação no escritório.

Não possuía habilitação para dirigir automóvel. Casara-se aos trinta e nove anos e só nesta idade teve condições de possuir um carro. A esta altura já se considerava muito velho para aprender a dirigir, ou aprender qualquer outra coisa que seja. Achava que já sabia de tudo o que precisava. Considerava-se um núcleo duro, fixo e irrevogável.

Dispensou o motorista da empresa e pegou um táxi. Rolaram pela avenida Dom Pedro II, atravessaram o elevado e encontraram um engarrafamento colossal na avenida Afonso Pena. O taxista sugeriu atalhar descendo a avenida Paraná, contornando a praça Raul Soares e subindo a Bias Fortes até o palácio.”Faça teu serviço, idiota! Tenho um compromisso às dezesseis horas e já são quinze e quarenta e cinco”.

O Santana táxi deslizava pela avenida Paraná, quando foi abalroado por uma Brasília no cruzamento com a rua Tupis.”O sinal estava fechado para o táxi”. Diriam os curiosos, alguns minutos depois.

Evair batera com a cabeça na coluna lateral do veiculo e ficara desacordado por uns dez minutos. Ao se recuperar e conseguir convencer os militares do resgate que estava bem, já eram quase dezessete horas.

Estava Ferrado.

Irritou-se com todos que tentavam convencê-lo de que precisava de um médico. “Precisava ter chegado a tempo na maldita reunião”.

Limpou os vestígios de sangue na sua fina camisa italiana (Nem percebeu o hematoma roxo, quase uma pústula, que lhe sombreava a testa). Sentia-se desnorteado e confuso. Vagou por algumas ruas sem saber ao certo o que deveria fazer. Terminou por entrar em um boteco de categoria duvidosa, que exibia uma placa patrocinada pela Coca-cola, procurando um telefone publico – o seu aparelho celular de ultima geração tinha se perdido no acidente – para ligar para a empresa.

Na placa mal conservada estava estampado: BAR DO MICKEY – O MELHOR CALDO DE MOCOTO DE BH.

O “Bar do Mickey” ficava na esquina das ruas Tupis com Guarani. Cerca de vinte metros abaixo ao longo da rua Tupis, ficava o 11º Batalhão de Infantaria do Exercito. O que não inibia a venda de Crack, praticada livremente nas imediações.

Evair não saberia explicar a vontade de se se encostar ao balcão e beber alguma coisa bem forte.

Aproximou-se e sentiu asco.

O balcão sujo, de mármore escurecido pelo tempo, suportava um copo de conhaque barato, que a atendente de avental encardido, solicitamente lhe servira. Sua cabeça suportava o medo de não ter cumprido uma ordem do odiado sogro.

O conteúdo do copo lagoinha fora sorvido em um só trago. Parecia sentir-se melhor com a bebida, mas na realidade o estado de confusão mental piorava a cada copo que a atendente – “Até que era bonitinha a menina” – lhe servia.

Jamais em toda sua vida havia bebido. Depois que o casamento o tornou rico, nunca mais tinha enchido os pulmões com o mesmo ar infecto que os miseráveis respiravam naquele botequim.

Foi lá pelo quinto copo de conhaque que seus olhares se cruzaram.

Evair imaginou ter sentido uma ereção. Aquele olhar, caiu como um download de arquivo pirata, no hard drive vazio que era sua existência.

Sentiu-se apaixonado.

Esqueceu por completo a reunião perdida.

O balcão sujo os separava.

Entre eles havia o movimento frenético das atendentes, copos de conhaque barato, aguardentes em copos embaçados pela sujeira e vários pratos com o grosso caldo de mocotó, que transbordando, contribuía ainda mais para a sujeira do balcão.

Ela ao perceber que estava sendo observada, sorriu, evidenciando uma falha escura em sua boca, onde antes deveria ter existido uma prótese de um dente molar. Era uma mulher vulgar. Uns quinze kilos acima de seu peso. Os cabelos incrivelmente negros –resultado de alguma tintura barata – caiam-lhe sobre os olhos de forma proposital. Talvez, para sugerir um certo ar misterioso, ou para ocultar uma mancha roxa em seu olho direito, resultado de uma desavença com seu cafetão.

Não demorou a estarem sentados lado a lado. Conversaram sobre trivialidades.

Ele discorreu sobre o negativismo de ideologia, implícito na política macro econômico adotada pelo estado, no tangente a utilização de verbas publicas. Ela reclamou do assedio em que era vitima dentro dos coletivos da capital.

“Outro dia passaram a mão na minha bunda dentro do balaio. Mas eu não deixei barato. Aprontei o maior barraco. O motorista teve que levar o ônibus até uma delegacia. Não dou mole mesmo!”.

Seu nome era Margô. Corruptela obvia do nome recebido na pia batismal: Margarida dos Santos Altíssima. Nascera no Recife. Tinha vaga lembrança do pai. Era nítida em sua memória a figura do padrasto. Fora deflorado por ele quando tinha por volta de dez anos. A violência se repetiu por algum tempo, até que foi bruscamente interrompida. Um dia sua mãe chegou em casa, e encontrou o padrasto nu, deitado na cama em meio a uma poça de sangue, com um punhal fino atravessado na garganta. Margô, sentada em um canto soluçava baixinho. Vestia apenas uma calcinha sob o corpinho de criança. O escarlate do sangue, ficava menos rubro no seu peito, á medida em que as lagrimas escorriam pelo seu colo, numa cena dantesca de incestuosa desgraça.

Matara o padrasto, e com ele todo o resto de criança que teimava em existir dentro de seu corpo e mente. Foi expulsa de casa pela mãe aos gritos de “Putinha assassina”.

Caiu na vida.

Vendia-se primeiramente na orla marítima do Recife. Depois Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais...Foi prostituta por quase todo o pais. Na sua época de ouro, era requisitada por político e empresários em Brasília. Chegou a ganhar algum dinheiro, mas as drogas e os abortos levaram toda a grana, e junto seu corpo desejável. Era agora uma puta decadente em todos os sentidos.

Vendia seu corpo apenas para sobreviver e manter seus vícios.

Percebeu que o homem com quem falava tinha dinheiro, e tinha tesão por ela. Intuiu que naquela noite estavam garantidas as drogas, as bebidas e talvez, até um pouco de sexo.

Evair sugeriu pegar um táxi e rumar para um motel sofisticado no anel rodoviário, saída para o Rio. Margô preferiu um motelzinho barato, ali no centro mesmo, justificando sua escolha dizendo:

“O motel Chap-Chap na avenida Paraná é pertinho daqui. É limpinho e bem mais baratinho”.

Na realidade fez esta escolha, porque o centro da cidade era o seu habitat natural. Ficava perto de seu cafetão que lhe protegia, e ao mesmo tempo lhe fornecia drogas. Evair acatou a sugestão pensando que assim desembolsaria menos dinheiro.

Tomaram banho juntos. Ficaram nus sobre a cama. Ele teceu elogios acerca do corpo dela, tocando desajeitadamente seus seios flácidos e grandes. Os lábios dela já estavam semi-abertos, a espera da língua invasora. Margô, ansiosa, passou a língua pelos cantos da boca de Evair. Ele sentiu pequenas fogueiras , acendendo a cada toque em sua pele. O sangue começou a latejar por todo o seu corpo. Tentou segurar com força a nuca de margo, ao mesmo tempo em que forçava o centro de seu corpo em direção a genitália quente da mulher. Ela como num golpe de judô, usou a força do movimento inicial, para girar sobre os lençóis encardidos, ficando por cima do corpo do amante, encaixando boca com boca, sexo com sexo. Gostava de parecer frágil, no final era sempre a mais forte.

Fizeram sexo, beberam e fizeram mais sexo. Ele queria mais, ela disse que precisava de drogas e exigiu que saíssem para comprar.

Evair deixou uma nota de cem reais na recepção do motel, como garantia de que iria voltar. Caução aceita porque Margô era conhecida. Era comum ela sair do quarto para pegar drogas com seu cafetão na esquina da rua Tupis com Guarani, e sempre voltar para fazer uso com seus clientes no quarto.

Saíram de mãos dadas e encontraram o cafifa em frente ao bar do Mickey.

“Canta curió. Quantas vai?” “Me dá dez.” “Ta na mão!”.

Mais uma nota de cem reais passou das mãos de Evair para as de Margô, e destas para a do traficante.

Neste momento, uma viatura da Rotam, saiu em velocidade da rua Tupis e entrou na Guarani, parando bruscamente em frente aos três.

Brilhou o cano do Tresoitao que o cafifa sacou, enquanto tentava correr. Evair sentiu apenas um calor na espinha, quando um projétil calibre doze, explodiu a sua cabeça. Um outro furo do mesmo calibre fazia brotar uma torrente de sangue no peito do cafifa.

Margô embarcou em uma viatura que chegou instantes depois. Surrada e seviciada, foi abandonada em um beco do Berra Lobo, favela da periferia da capital.

O legista encontrou cinco pedras de crack no bolso da fina camisa italiana que Evair usava. Fato amplamente divulgado, que causou escândalos e trouxe prejuízos a uma certa companhia de prestação de serviços.

O que poucos ficaram sabendo, é que quando Margô se livrou dos policiais em um beco da favela para onde foi levada, trazia escondido em sua vagina , cinco pedras de crack. Conheceu um “maluco” em uma quebrada próxima e foram para o seu barraco usar a mercadoria.

Margô ainda saiu ganhando dez reais, que foi o que cobrou pelo sexo...Afinal, segundo a sociologia, ela tinha que se reproduzir no dia seguinte.

milimetro
Enviado por milimetro em 18/05/2007
Reeditado em 11/01/2008
Código do texto: T491239
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