Prefácio para As Confissões de Dulce

Com a casa vazia, sento-me na solidão do sofá e relembro ideias vagas dos meus doze, treze anos. Tenho na mão o manual que nesse tempo enchia de sarrabiscos e do qual recortava – como de todos os outros manuais que tinham imagens – as figuras para o meu passatempo de fazer colagens nos cadernos. Como grande parte dos meus colegas desse tempo, acho que nunca liguei muito às personagens destas histórias, tão desligadas do mundo que nos rodeava. E depois, talvez a história fosse sempre apenas uma narrativa, uma construção que assumia diferentes formas conforme a posição do olhar de cada narrador. Talvez por isso, ou talvez por nenhuma mão feminina ter dado o seu contributo na escrita desta obra que tenho sobre os joelhos, pressente-se um certo viés, mais ou menos óbvio, na narrativa que nos apresentam como proposta de identidade da minha nação. Diz-se – nas entrelinhas – que é uma nação de homens valentes, de servos trabalhadores, de cavaleiros valerosos. Que esses cavaleiros eram os bons e os outros – quem quer que fossem esses outros: os Mouros, os de Leão, os de Castela, etc. – os outros eram os maus. E dizem-nos – nas tais entrelinhas – que temos todos de nos identificar com essa identidade que os historiadores inventaram para nós.

Mas talvez haja sempre um outro lado das histórias que nos contam. Talvez os factos – os factos! – sejam narrados, do lado de lá das fronteiras, por outros narradores que imaginam para si e para os seus um outro projeto de identidade histórica. Talvez algumas das nossas vitórias estrondosas não tenham sido derrotas para os nossos inimigos – os outros –, mas sim meras curiosidades históricas sem importância de maior, face às suas próprias vitórias também elas estrondosas e esmagadoras.

Talvez a história não se faça só com dinastias de reis e de bispos. Talvez a pátria não seja realmente uma pátria. Talvez a pátria seja antes uma mátria. Talvez as fronteiras não sejam o fim último da história deste povo, que não começou no século doze nem ficará suspensa, qual estátua de gelo, no estado em que se encontra nos dias que correm. Talvez o nosso projeto ainda não esteja acabado. Talvez ainda falte mesmo cumprir-se Portugal. E talvez isso signifique, não isso, mas outra coisa qualquer.

Penso em tudo isto enquanto releio algumas das páginas dos meus tempos de escola. Que D. Afonso Henriques, o filho do conde Henrique, que viera de Borgonha, e de D. Teresa, a filha bastarda de Afonso VI, rei de Leão, se revoltara contra sua mãe e que decidira lutar contra os Mouros e contra Leão. E por aí adiante... D. Sancho I, filho de D. Afonso Henriques e de sua esposa, D. Mafalda (da qual ficaria órfão muito cedo), seguiria as passadas do pai, mas sendo mais bem sucedido na colonização dos terrenos conquistados do que nas conquistas propriamente ditas. Dulce, a sua esposa, que viera de Aragão, é uma voz silenciada. Tal como Mafalda. Tal como muitas outras vozes.

Talvez a história que me contaram seja apenas uma entre muitas outras possíveis. Talvez faltem peças no puzzle... Talvez seja preciso escrever o que falta.

Agarro numa caneta e nalgumas folhas de papel, e escuto.

Quando, finalmente, essa voz suave se aproxima docemente do meu ouvido, começo a escrever as palavras que ela me vai ditando. Não sou eu que escrevo, é alguém que me fala, que me murmura ao ouvido como se quisesse falar pela minha voz. Incerto, acedo ao pedido, sem saber aonde isso me levará... sem mesmo saber se apagará esta inquietude que há tantos anos, sem que eu saiba porquê, me desassossega.


(Excerto do livro "As Confissões de Dulce")