Leito de morte

Sou neurótico. Assumido. Ou melhor, sou preocupado com o destino das pessoas que me cercam. Pego-me analisando o futuro de quem está por perto. Mesmo em meu leito de morte - pode ser que eu esteja me despedindo, leitor, sem que tu saibas - , não deixo de me ocupar com o mundo. Sou um cidadão e o serei até o meu último segundo de existência.

Ao meu lado, está um homem acompanhado por sua neta. Mesmo não conhecendo a pequena garota que, nesse momento, segura um livro infantojuvenil e devora cada palavra como se fosse seu último dia de vida, pergunto-me qual vai ser o seu destino. Aparenta ter doze anos. Será que ficará grávida em breve? Participará das inscrições para o Big Brother Brasil em um futuro não muito distante? Ou terá mais sorte do que eu? Penso que devo avisar a todos sobre as possibilidades que podem surgir em seus caminhos. Se tivessem feito isso comigo, minha vida teria sido diferente.

Aos dezesseis anos, era tratado como uma criança. Cabelos repartidos e melados devido ao excesso de gel. A blusa, sempre impecavelmente passada, deixava-me com ares dos anos 20. Calças sociais. Minha mãe não admitia que eu usasse jeans. "Sua aparência não pode ser igual a dos demais. Mantenha sua superioridade." E eu era vítima da zombaria de meus colegas e das garotas da escola.

Criado em uma família conservadora, não podia emitir opiniões liberais e muito menos defender direitos que achava justo. "Com quem você está andando na escola? Que companhias estão pregando essas ideias tortas na sua cabecinha vazia?" Minha mãe batia em minha cabeça com os nós dos dedos. Tentava explicar que, apesar de não parecer, eu tinha personalidade. Sufocada, mas tinha.

Minha tentativa vã de me revelar foi impedida. Meus pais me enviaram a um internato no exterior. Suíça. Eles eram ricos, mas tão fechados quanto o quarto em que me prendiam no colégio. Depois de seis meses, mandei para mamãe uma carta em que afirmava ter mudado meu ponto de vista acerca do mundo e concordava veementemente com todas as suas opiniões. Em dois dias, estava novamente em casa. Nunca mais levantei a voz para discordar dela. Desse modo, a autoritária matriarca jamais desconfiou de que minhas palavras eram falsas e só foram usadas porque eu não aguentava mais a nova moradia.

Além de me proibir de discordar, quando completei 18 anos, ela resolveu que havia chegado a hora de escolher roupas supostamente adequadas à minha idade. "Você está crescendo. Em breve, terá contatos mais próximos com meninas. E eu sei exatamente do que elas gostam" e sorriu. "Não, mãe. Você não sabe nem do que você gosta", pensei e consenti. Era criminoso o que ela fazia comigo. Desejei fugir de casa, mas abaixei a cabeça e permaneci calado. "Você está lindo!", exclamou em voz alta. Eu estava ridículo e parecia o meu primo de cinco anos de idade. Seria mais atraente se vestisse uma camisa do Mickey Mouse.

Mamãe morreu quando eu fiz 25 anos. Exatamente um dia depois do meu aniversário. Compreendi imediatamente o que os astrólogos falam sobre o término do inferno astral. Lembro-me até hoje de suas derradeiras palavras. "Agora, você vai ver o que é viver sozinho, abandonado, largado e rejeitado. Sei que reclamava de mim em silêncio, mas você vai saber o que é ruim de verdade" e deu o último suspiro. Ainda tento, depois de mais de 40 anos, compreender o que ela quis dizer com isso. Papai morreu semanas depois. Ele, sim, era devoto da santa esposa.

A menina ao meu lado continuava a ler compulsivamente o livro em suas mãos. Eu estava profundamente incomodado com seu comportamento. Em alguns momentos, soltava risinhos frenéticos. Inclinei-me vagarosamente para tentar enxergar o que a adolescente lia, mas ela percebeu e me encarou. "Perdeu alguma coisa aqui?" Indelicada. Insolente. O avô, acomodado, não teve a coragem de me defender. "Só queria ajudar". Rebati imediatamente afirmando que ela poderia ser mais bem educada. "E você poderia ser menos chato."

Virei-me de costas para a garota. "Qual será o fim dessa juventude que não respeita os mais velhos?" Ia usar o meu lado prolixo para discursar enquanto a enfermeira cuidava dos pacientes que estavam por perto. Quem sabe ela me defenderia? Ao terminar o meu ensaio mental, um grito invadiu meus ouvidos. A neta jogou o livro no chão e fazia barulhos estranhos. Sem entender, olhei a cena. Uma médica, cuja presença eu nem notara, olhava para baixo. Outra mulher, parecida com o moribundo, abraçava a chorosa menina e sussurrava algo inaudível. Compreendi, então, que o homem estava morto. Fiz o sinal da cruz pela sua alma e fechei os olhos. Tenho horror a defuntos.

"Minha hora está chegando. Tenho certeza." Palpitações, intuições, calafrios. Senti a presença de espíritos ao meu redor. Eu não sabia como lidar com eles, mas estavam ali para garantir a minha viagem de ida para algum lugar. Ou lugar algum. "Pai Nosso que estás no Céu, criador do Céu e da Terra, e Jesus Cristo, seu único filho...como é mesmo esse negócio?" Uma mão fria tocou meus pés. "Rogai por nós, amém!", exclamei em um tom mais alto do que deveria. Todos os olhares se direcionaram a mim. Uma gota de suor frio caiu em meus olhos.

A mesma enfermeira que acabara de atender o morto olhava para mim de forma doce. "Ela é a mensageira da morte". Certamente, a jovem notou o pânico em meu rosto. Sem meu consentimento, aferiu minha pressão, escutou meus batimentos cardíacos e abriu alguns exames. Era a minha sentença de morte impressa.

- O senhor está aqui há vinte dias, certo? - confirmei, balançando a cabeça. Não ousaria falar. Minha voz sairia trêmula e afinada. - Certo, seu...seu...seu Antônio. Tem algum parente com quem eu possa entrar em contato?

- Parente? Não. Eu sou um homem independente. Por quê? Eu vou morrer, não é? Pode dizer. Sei que meu fim se aproxima. Não sei se você acredita, mas vejo minha mãezinha ao seu lado, rodeada por flores e com a mesma cara autoritária de sempre. Mas como pode, depois de tudo o que fez, estar envolta em flores e...

- Seu Antônio, o senhor não vai morrer. Só queria avisar a seus familiares que podem vir buscá-lo. Mas, como mora sozinho, vou ajudá-lo a arrumar seus pertences e chamarei um táxi para levá-lo - e esboçou um pequeno sorriso.

"Como assim não vou morrer?", pensei, olhando a moça juntando meus pertences. "Ei, espere, menina.Vamos conversar sobre isso. O que vou fazer com meu testamento e minha carta de despedida?" Tentei falar na velocidade em que pensava, mas minha voz havia sumido. Levantei-me e olhei a avenida movimentada. Não estava preparado para sair daquele lugar ainda. Perguntei se poderia ficar por mais um tempo. A resposta veio em companhia de um olhar apavorado. "O senhor não precisa. Está ótimo. Tem a saúde de ferro!"

- Mas eu tenho tido fortes palpitações. Sinta o meu coração. - e coloquei a mão da menina sobre meu peito.

- Sua pressão e seus batimentos estão perfeitos. Não há nada de errado com o senhor.

Ela pegou a minha mala e uma sacola de roupas usadas. Esticou o braço e segurou o meu. Caminhamos pelo corredor. Minha respiração estava ofegante e eu fazia de tudo para a enfermeira perceber que eu, em hipótese alguma, poderia receber alta. A última lembrança que tenho da moça é o cativante e repetitivo sorriso. Entrei em um táxi com a certeza de que o retorno para meu leito de morte não demoraria.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 16/08/2014
Reeditado em 18/08/2014
Código do texto: T4925138
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