NATACHA

Natacha estava deitada na “chaise-longue” que o pai colocava no pequeno jardim de sua casa, sempre que o sol conseguia aquecer os dias, permitindo-lhe descansar o mínimo que aquela tosse persistente consentia.

Já não tinha grandes ilusões em relação ao mal que a afligia, o que a preocupava, embora não tanto quanto deveria pois Natacha não pensava que pudesse morrer e apesar de muito nova, estava também profundamente desiludida e desinteressada da vida, para grande desespero do seu pai, que não conseguia conformar-se com esta situação. Ela era a única filha que tinha.

Só as visitas do seu primo Pedro lhe traziam alguma alegria e contacto com o mundo exterior, sendo por isso mesmo esperadas com uma ansiedade que se foi atenuando com o tempo, pois as notícias de Vladimir continuavam sempre as mesmas: nada se sabia dele.

Por estranho que parecesse ela nunca punha em dúvida o amor dele e continuava a pensar que um dia viria procurá-la e, esta convicção era tão forte, que Pedro não tinha coragem de a contradizer.

Não se lembrava da mãe que morrera quando ainda era muito nova, mas lembrava-se desde sempre como o seu pai a tinha envolvido sempre em carinho e atenção, que se reflectia na sua cuidada educação, levando-a a conhecer e falar bem, para alem do russo, o francês e a língua germânica. Estudara ainda literatura, pintura e interessava-se pelos movimentos artísticos e políticos em curso na Europa, dos quais tinha conhecimento sobretudo através das visitas dos negociantes de jóias, clientes do seu pai.

Quando a corte se mudou para Moscovo o pai decidiu deixar Rostov, onde viviam, para se estabelecer em Moscovo.

Esta mudança alterou um pouco a sua vida pois aproximou-a do primo Pedro, enquanto em Rostov a vida era muito solitária, só se dando com as colegas de escola. Com Pedro começou a sair para passear e para espectáculos, normalmente idas ao teatro.

Pedro tinha enviado um bilhete informando-a que hoje não poderia vir. Natacha ficou sonolenta descansando na “chaise-longue”, de olhos fechados e como lhe acontecia por vezes, revivia todo o seu passado recente com Vladimir, sempre na esperança que a memória lhe trouxesse algum dado novo que lhe fizesse vislumbrar o porquê do seu desaparecimento repentino e sem qualquer explicação.

Lembrava-se, como se fosse hoje, quando o tinha conhecido.

Pedro convidara-a para um passeio no parque aproveitando um lindo dia de primavera e, durante o passeio, encontraram Vladimir que pintava. Pedro e ele tinham sido colegas na escola e há alguns anos que não se viam. Apresentou-os e enquanto conversavam os dois ela começou a observar os desenhos dele.

Eram sobretudo rostos e chamaram-lhe a atenção, particularmente os olhos, pela profundidade e transparência que lhes conseguia transmitir, parecendo um convite a penetrar nos pensamentos que ocultavam.

Quando se despediram disse-lhe que tinha gostado dos seus desenhos e ele, que lhe parecera muito tímido, respondeu-lhe com um inesperado: gostaria de voltar a ver-te.

Já não se lembrava bem mas pensava nada lhe ter respondido, sorrindo-lhe unicamente, embora lhe tivesse agradado que ele e Pedro combinassem futuros encontros.

Pedro satisfez a sua curiosidade dizendo-lhe tudo o que sabia sobre Vladimir. Ele era e continua a ser muito introvertido, desconfiado, com uma enorme dificuldade em fazer amigos…era um solitário, culto e com um enorme jeito para desenhar e pintar, no que era fortemente contrariado pelo pai, um nobre de relações muito próximas do czar, que tinha para ele outras ambições. Por detrás de todas estas particularidades que o tornavam tão fechado aos outros, estava possivelmente aquilo que se dizia da sua mãe: fora uma cozinheira árabe até casar.

Natacha ouviu calada este retrato de Vladimir e nada comentou com Pedro, mas de qualquer modo gostara do aspecto físico de Vladimir, alto e aparentando um tranquilo vigor, com uns olhos calmos e profundos que fixavam sem, no entanto, constranger.

Começou, nas suas saídas com Pedro, a conduzir com mais ou menos subtileza os seus passos de modo a provocar encontros com Vladimir, que pelo seu lado devia estar a fazer exactamente o mesmo, pois sempre se encontravam nos mesmos locais. Cada vez falavam mais e se demoravam juntos por mais tempo, acabando muitas vezes Vladimir por parar de pintar e acompanhá-los no passeio.

Depois tinha começado a sair sozinha e a encontrá-lo. Ele sempre contido mas nunca deixando de manifestar o agrado pelo encontro, fosse por um sorriso tímido ou por algumas desajeitadas palavras de elogio à sua beleza, acompanhadas de um rubor que procurava ocultar de qualquer forma. Ela mais expansiva e extrovertida brincando com o facto de tão facilmente se encontrarem, sempre por acaso, como frisava trocista.

E continuaram a encontrar-se, mas agora todos os dias, exceptuando aqueles em que a chuva resolvia provocar impaciências, colocando-os frente às janelas, olhando o céu cinzento indiferente às suas vontades.

Agora, nos seus encontros falavam de vários assuntos, sobretudo pintura e literatura, ela sempre mais faladora, mas provocando e conseguindo que Vladimir fosse vencendo a sua timidez e falasse de si próprio, contando-lhe por exemplo, a luta que tinha tido com o seu pai para convencê-lo a deixa-lo pintar.

- Não sabes como desenhar e pintar é importante para mim, conseguir traduzir estados de alma, sensações e movimentos em desenhos e cores, são momentos únicos, momentos que tenho dificuldade em descrever.

- Porque gostas tanto de desenhar pessoas, rostos?

- Porque no rosto e sobretudo nos olhos de uma pessoa está tudo o que ela é. Se conseguires entrar pelos seus olhos chegas com certeza ao que pensam.

- Achas que és capaz de fazer isso? Perguntou-lhe Natacha sorrindo.

- Porque me perguntas isso? Claro que…não, não consigo, não.

- Perguntei porque pela maneira como falas, desenhas rostos e os pintas, chega a parecer que os desvendas.

- Não, não digas isso. Não sei se conhecer os pensamentos dos outros seria uma coisa boa.

Na sequência deste diálogo, Natacha lembrava-se que ele, inesperadamente, tinha-lhe estendido a mão e agarrando-a levemente dissera-lhe: - vamos dar uma volta, não quero pintar mais, agora.

As suas mãos já antes se tinham chocado muita vez quando andavam lado a lado, mas desta vez ficaram juntas durante todo o passeio, assim como os olhos que antes se esquivavam começaram a fixar-se sem fugirem um do outro.

Era o amor que nascia entre eles. Natacha não tinha qualquer dúvida que estava a enamorar-se de Vladimir e sentia que o mesmo estava a passar-se com ele. Sabia pelo seu primo do interesse que desde o início ela despertara nele, pois tímido como ele era conseguira levar Pedro a contar-lhe tudo sobre ela: quem era, o que fazia o seu pai, de onde tinham vindo, quais os seus interesses.

Lembrava-se também do primeiro beijo, quando patinavam no lago gelado e na sequência de um desequilíbrio se viram abraçados de frente com as suas bocas a encontrarem-se no gesto há muito desejado e contido e, de seguida, sorriu ao pensar no enorme tombo que ele dera e nas suas gargalhadas motivadas, talvez, pela suspeita de que aquela queda era o resultado explosivo de um primeiro beijo numa mulher, por acaso nela.

A evolução do sentimento que nascia e se fortalecia entre ambos, pôs-lhe um problema que ela fugira a enfrentar, mas que agora não podia ignorar por muito mais tempo: Pedro também gostava dela e ela não queria que ele se magoasse. Pedro era o amigo que não queria perder.

Entretanto Vladimir e ela passavam várias horas por dia juntos, o que já motivara perguntas do seu pai, as quais ela conseguira iludir dando respostas evasivas e brincando com ele. Nessas tardes que passavam juntos, Vladimir foi desvendando o seu curto passado, contando-lhe as suas idas à corte acompanhando o pai e como ao desenhar os frequentadores do palácio ouvira certas conversas que lhe anteciparam o conhecimento da queda da influência do seu pai junto do novo czar e que veio a motivar o regresso dos seus pais a Kiev. Havia sobretudo um amigo do pai, Petrovich, que o chocara particularmente pois tinha-o surpreendido a intrigar contra o seu pai. Deixara por isso de acompanhar o pai nas idas à corte e começou a procurar os seus modelos entre o povo da cidade percorrendo os parques e as margens do rio Moskva. E foi por isso que acabámos por nos encontrar, concluiu Vladimir.

- Vais voltar com teus pais para Kiev?

- Como podes perguntar-me isso? Eu te amo, não sabes? Claro que não vou com eles! Claro que fico aqui!

Sabes uma coisa, a vida nunca me ofereceu ninguém como tu, nunca senti por ninguém o que sinto por ti; fazes-me sentir a vida de uma maneira diferente da que sempre senti, vejo mais cores e cores mais vivas, vejo as pessoas de maneira diferente, parecem-me mais alegres e sorriem quando me olham, o que não acontecia antes ou, se acontecia, eu não dava por isso; reparo nas árvores, no fresco das suas sombras e no abrigo que dão ao canto dos pássaros que as procuram, sinto-me vivo e com vontade de viver e com alegria e força para procurar a felicidade que hoje sei ser possível, por ser possível viver ao teu lado. E tudo isto acontece porque tu apareceste na minha vida, porque te desejo, porque te amo.

- Como queres que vá com os meus pais para Kiev? Nunca te abandonarei enquanto me amares!

Natacha ficara sem palavras perante esta resposta e só conseguiu sussurrar-lhe abraçando-o:

- Eu não sei, tão bem como tu, traduzir em palavras o que sinto, mas sei que também te amo profundamente e só consigo imaginar o meu futuro a teu lado.

E finalmente as suas recordações paravam sempre no mesmo dia, do qual tinha sempre a mesma lembrança de como começara.

Tudo começara com aquela pergunta que lhe tinha feito, que sempre lhe parecia tão normal, tão comum, mas que pressentia encerrar a chave de um mistério indecifrável para ela: o desaparecimento de Vladimir.

Perguntara-lhe simplesmente: - Quando me pintas?

Parecia-lhe tão natural que ele a pintasse, pintava quase toda a gente que conhecia e não conhecia, porque não ela?

Ele respondera-lhe meio sério meio a brincar: - Porque não quero desvendar-te! Não é o que dizes que faço quando pinto alguém?

- Mesmo que assim seja que mal tem? Não tenho medo do que possas encontrar por detrás dos meus olhos, respondera-lhe brincando.

- Está bem, vou pintar-te. Senta-te naquela pedra, ficas com o lago ao fundo.

Quase duas horas depois parou.

Ela, durante esse tempo, permanecera absorta a pensar que tinha que esclarecer a sua situação com Pedro. Olhava para Vladimir e pensava que o amava e tinha que o dizer a Pedro, não o queria fazer sofrer nem perder como amigo, não podia manter esta situação. Iria falar com ele hoje mesmo.

- Podes vir, disse-lhe Vladimir, já é tarde. Gostas?

- Gosto. É assim que me vês, tão suave, irradiando essa alegria toda?

Ele sorriu e não lhe respondeu.

Perto de casa dela beijaram-se e separaram-se com um até amanhã de olhos nos olhos.

Nunca mais o viu. Todos os dias, depois todos os meses, mais tarde todos os anos tinham sempre um amanhã de espera e de esperança. Vladimir ia voltar, o seu amor não era mentira.

Toda a angústia e ansiedade que sentira nos primeiros tempos, porque não conseguia perceber o que tinha acontecido, a fizeram procurar obsessivamente por Vladimir, no parque onde passeavam, pelas margens do rio Moskva, indo acompanhada por Pedro até casa dele, onde os vizinhos confirmaram a partida da família para Kiev. Mas os olhos dele não mentiam quando se despediram pela última vez.

Às vezes pensava que era como se tivesse havido um terrível mal-entendido envolvendo o sentimento de Pedro por ela, mas não amava nem nunca amara Pedro e também nunca falara de nada a Vladimir e este não podia adivinhar pensamentos. Só brincando, como ela lhe sugerira um dia, ao ver a profundidade dos olhos que pintava, parecendo desvendar o que estava por detrás deles… só brincando…

Nada a interessava, deixou quase de comer, apareceu aquela tosse e aquele cansaço e com eles a preocupação do seu pai e dela própria.

E agora mais um dia que passava. Pedro não viria hoje como tinha mandado dizer.

Recostou-se na “chaise-longue”, adormeceu e começou a sonhar: Vladimir vinha ao longe, aproximava-se com um quadro na mão; era o seu quadro e dizia-lhe repetidamente, só agora o acabei não podia vir antes, só agora o acabei não podia vir antes… e beijou-a suavemente…já podes dormir. Descansa.

Natacha sorriu feliz e adormeceu no seu próprio sonho.

Não mais acordou.

José Manuel Pyrrait
Enviado por José Manuel Pyrrait em 17/08/2014
Reeditado em 18/08/2014
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