Infância

Aquela faixa de areia, limitada por pedras dos lados e aquele mundo de água eram seu reino. Até onde a vista alcançava, até uma pedra que se erguia no meio do mar. Ali o mundo funcionava direito.

Na areia úmida desenhava, virava estrelas, fazia túneis, caçava tatuís. Gostava dos bichos da praia. Menos das água-vivas, elas não tinham cara. Não podia gostar de um bicho sem cara.

Às vezes, passava horas colhendo algas coloridas pra enfeitar os cabelos. E virava uma sereia de cabelos verde-claros gelatinosos, ou vermelhos crespos. Empilhava pedras e construía moradas, castelos e torres. Colecionava conchas, que ia dispondo sobre a areia e que o mar buscaria na maré seguinte.

Um dia chegou à praia um menino. Ela se adiantou animada a apresentar a ele seu mundo: as brincadeiras, os lugares secretos e as regras, ah ela as tinha.

Mas ele fez pouco de suas leis, riu de seu biquíni de algas, derrubou uma por uma as pedras do seu castelo. Então a chamou para uma corrida.

Nadariam até “aquela pedra grande no meio do mar, ganha quem subir primeiro!”. Ela quis lhe explicar que não havia pedra nenhuma, aquilo era uma ilha, sua ilha, e não se podia subir lá. Mas ele já batia as pernas enérgicamente em direção à pedra-ilha dela. Ela então enfiou a cabeça na água salgada e foi batendo e dando afobadas braçadas.

Quando tirou o rosto d’água o viu escalando a pedra, como podia fazer isso? Chegou mais perto, encostou na ilha para subir também mas sentiu a palma da mão ceder de encontro à concha do marisco, olhou o corte nem raso, nem fundo, que sangrava e viu o vermelho do sangue ir se dissolver na água do mar. E sentiu por dentro um ódio amargo por, pela primeira vez, não entender algo que se passava no seu mundo. Não lhe doía tanto o corte quanto o coração.

Teve então a certeza que algo de definitivo havia acontecido, tinha perdido alguma coisa e não sabia o que.

À noite, exausta, dormiu. E sonhou com aquele menino, e descobriu que ele tinha um sorriso prateado e os olhos florescentes como o plâncton. Entendeu então, que passaria toda a vida buscando o que perdera aquele dia.

Maíra
Enviado por Maíra em 20/05/2007
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