A ALMA FUGIDA

A alma fugida se espreitou pelo corredor da casa grande. Em um dos quartos, duas pessoas faziam caso sobre algo e a alma fugiu antes de saber o que era. Na cozinha alguém reclamava da comida e a alma fugiu antes que o prato fosse servido. No banheiro alguém se masturbava e alma fugiu antes do orgasmo. Na sala de estar ela me viu debruçado sobre a janela fumando um cigarro e também fugiu, antes mesmo que eu pudesse me virar para ver o que havia me causado aquele calafrio. No quintal poderia ter sido mais feliz paginando as flores na primavera ou floreando as folhas de outono. Mas era verão e, novamente, ela fugiu. Fugiu tanto que quase chegou ao outro lado da rua, não fosse um caminhão que, na contramão, a deixou estendida no asfalto quente.

Chamaram ambulância, a policia e a imprensa. Um paramédico tomou-lhe o pulso e nada sentiu. Passou o caso para o médico legista que após examinar a vítima e consultar um grosso livro de medicina, não encontrando na que o auxiliasse naquela estranha situação, decidiu pedir demissão do trabalho e, mais tarde, naquela mesma noite, da própria vida. Em seguida, um policial tentou tomar-lhe um depoimento, mas logo desistiu e olhou para os curiosos da vizinhança. Testemunhas? Ninguém viu. E aquela senhora que pendurava roupas no varal? Não viu nada não. Estava distraída. Não queria confusão. Tinha muitos filhos para criar e o marido, que era caminhoneiro, há dias que não voltava. Não queria caso na delegacia. Além do mais a alma não era sua, nem ao menos sua parente de sangue ou seja lá o que for que dizem sobre o parentesco das almas. Que achassem seu dono por direito, ao invés de ficarem incomodando gente honesta com assuntos assim, tão impalpáveis. E, por fim, um jornalista tomou-lhe um tempão e não conseguindo palavra alguma, decidiu inventar uma história inteira, que seria publicada no jornal do dia seguinte, não fosse a intervenção do prefeito da cidade, que nas eleições anteriores prometera arrumar as sinalizações de trânsito daquela região onde a alma fugida foi atropelada.

Não sabendo o que fazer com tal alma, as autoridades fizeram o que fazem com as coisas perdidas, procuraram-lhe o corpo que lhe era dono por direito, para que ela tivesse assim, um funeral decente. Mas por um erro de cálculo, pois a alma era fugida e não perdida, dono algum lhe reclamou propriedade. E a alma fugida, cansada de toda a confusão, decidiu fugir novamente. Juntou forças, ficou de pé e pulou; e pulando esqueceu de despular, subindo livremente aos céus, feito pipa esquecida de uma criança que um dia adulteceu.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 01/10/2014
Reeditado em 02/10/2014
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