O HOMEM QUE ACHOU QUE DEVERIA TER IDO AO JOGO E QUE DEPOIS, AO ACHAR QUE ERA UM PEIXE, SURPREENDENTEMENTE E POR MAIS ESTRANHO QUE ISSO POSSA PARECER, VIROU UM RIO.

Antes de adormecer, ele só conseguia pensar que deveria ter ido ao jogo.

Mais cedo, naquela mesma noite, obviamente não dormia. Bebia uma cerveja ou duas, fumava alguns cigarros e tentava pegar alguns peixes. Bebeu, fumou, mas não havia jeito de peixe vir. Poderia agora estar no jogo, como todos os outros. Talvez devesse mesmo ter ido ao jogo ao invés de ficar apenas pensando que deveria ter ido ao jogo. Não, ele não poderia ter ido ao jogo, e sabia disso. Estava enlouquecendo com a consciência do enlouquecimento, preferiria não ter essa consciência e enlouquecer como os outros loucos normais enlouquecem...vocês sabem, uma doença, um acidente ou, quem sabe, um evento traumático. Tinha inveja destes que enlouquecendo esquecem do mundo que viviam, como se este mundo fosse apenas uma cidade natal que fora deixada para trás cedo demais para que possamos ter algum tipo de lembrança. Mas de evento traumático só tinha o tédio de não ter do que muito gostar, de doença uma rinite e a cabeça nunca batera, ao menos não de forma acidental. De qualquer forma, gostaria de ir aos jogos e ter gosto por isso. Mas estes dois usos para o verbo gostar estavam tão distantes de si quanto ele e os peixes que nunca conseguia pescar. Olhou para o rio, tão calmo, tão atraente e se perguntou por que os peixes lhe fugiam. Então descobriu algo, mesmo tendo consciência que este algo era apenas fruto de sua loucura e não tinha a menor relação com a realidade do mundo normal, deste mundo em que as pessoas vão aos jogos e se divertem. Descobriu que ele era o peixe. Ele era o peixe que fugia de si mesmo. A morte deveria ser a coisa mais estúpida da vida, mas infelizmente a própria vida se encarregava de deixar a morte do lado de fora e toda estupidez dentro dela. E assim, tomado por um espírito de fuga que ele achava ser um espírito de busca, adormeceu no fundo do rio. No fundo do rio adormeceu e no fundo do adormecimento virou um rio. Neste rio, uma velha também navegou, mas isso é uma outra história, muito embora, tudo isso; ele, a velha, eu e vocês, façamos parte de uma mesma história, grande demais pra que eu possa contar.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 06/10/2014
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