Bonequinha Maltrapilha

A noite caia rápido e eu sem um tostão nos bolsos da calça . Era noite de lua cheia , os lobos olhariam para o grande farol lá no céu escuro e uivariam como um presidiário grita por um cu feminino . As coisas , para variar , não corriam bem para mim . Como sempre o aluguel estava vencido , o gás no fim e o chuveiro queimado . Só me restava o pouco de dignidade que eu me recusava a perder me prostituindo nas ruas por qualquer dez pratas . E tinha a Olivia , ou melhor , já não a tinha mais . Ela se foi quando as coisas começaram a ficar feias . Levou o gato e as garrafas de vinho . Não lutei pelo gato , não gostava daquele bicho mesmo . Não gostava dele porque estava alheio a toda situação difícil . De noite saia , na certa encontrava alguém que o alimentava ou uma espinha de peixe no mercadão central , e voltava pela manha para dormir na cama , entre Olivia e eu . Ela lhe dava carinho e um pouco de cobertor . No final das contas ela tinha mais carinho pelo bichano que por mim . Então ela o levou e eu gostei , só não gostei dela ter levado o vinho . Isso não , senhor . Sem grana tive de apelar para o Empório do Léo . Eu tinha credito naquele lugar graças a nossa amizade . Ali eu conseguia algumas garrafas , cigarros e amendoins chineses para acompanhar . Mas teve essa noite , peguei uma cestinha e fui recolhendo as coisas. Conhecia bem aquelas prateleiras , Botei o vinho , uma caixa de cigarros e queijo - Já estava enjoando dos amendoins . Era noite de segunda e a loja estava vazia . Com tudo sobre o caixa Léo foi passando as coisas pela registradora .

-Tem alguma coisa de errado com você , Inácio …

Disse Léo com o queijo na mão .

- Não , estou bem , Léo .

- Não estou perguntando estou afirmando . Esta magro, os olhos parecem que foram colados no seu rosto . E Jesus , olhe só para suas roupas …

- O que é que tem de errada com elas ?

- Não sei , vamos começar pelos joelhos remendados e o rasgo na camisa debaixo do braço esquerdo .

- É meu pijama .

- Você atravessa a cidade de pijama as onze da noite ?

- Não tem nada de errado nisso . Estranho seria se eu o fizesse de dia , não ?

Léo passou o queijo e botou na sacola . Depois tirou um papelzinho amarelado da caixa registradora e me entregou . Tinha um valor ali , um valor alto que eu perguntei do que se tratava .

- Sua conta , amigão .

- Impossível !Como deixou isso acontecer ?

- Espera ai , como eu deixei ?

- Mas claro , você é quem esta ai atrás e digita os números . Não poderia sonegar algo dos impostos , seu lá , faça sua magica !

Ouve silencio , e seria um silencio total se não fosse pelo som que vinha do radinho a pilha que chiava numa estação fora do ar atrás dele .

Depois de nos encararmos por algum tempo , tomei a palavra .

- Bom , vamos lá . Me entregue a sacola . Tenho uma longa caminhada até em casa .

Com a cabeça Léo fez um não . Negação , eu estava acostumado com aquilo , mas não aquela noite . Vinha aguentando merda a muito tempo e aquilo , somado ao chiado do radinho a pilha me enervou .

- Vai te foder , meu camarada . O que é isso agora ? Hen ... tá querendo uma chupada ? Sei lá , pela sua cara tá me parecendo que precisa ser currado , isso sim. Vamos me passe a sacola .

Bati com a mão no balcão . Foi ai que Léo apanhou o amansa louco que deixava sempre ao seu lado pendurado por uma cordinha na parede .

Perguntei o que ele iria fazer com aquilo .

- Você esta me roubando , filho da puta …

- Esta louco , só pode ser , Léo . Estou te pedindo para botar na conta !

- Não , nada disso . Esta me roubando . Venho te sacando a tempos . A principio pagava , sempre pagava um pouco , mas agora já faz tempo que não vejo a cor do seu dinheiro . Espertinhos como você já me passaram para trás mais de uma vez . Primeiro roubam a confiança , depois somem e deixam um punhado de notas sem pagar .

Dei uma olhadinha no pedaço de papel amarelo . Qualquer movimento inesperado meu e o amansa louco me botaria a nocaute .

- Escuta , só mais essa , meu chapa . Vai lá ! Pelos velhos tempos .

Léo soltou o cacete e cobriu o rosto com uma das mãos .

- Me paga o metade do que esta levando hoje e tudo bem .

Disse ele .

- Metade ?

Nessa hora o sino em cima da porta tocou . Alguém acabara de entrar . Uma mulher . Maquiagem borrada e cheiro nauseabundo de cigarros . A raiz clara dos seus cabelos tingidos já se faziam ver . SE apoiou no balcão e pediu um litro de whisk .

- Espera sua vez , moça …

Falei , lhe olhando de rabo de olho .

- E ai , Léo . Você acha mesmo que se eu tivesse grana para metade de tudo isso eu atravessaria a cidade para comprar fiado ?

Ele tornou a apanhar o porrete .

- De o fora , Inácio .De o fora é só volte quando tiver a grana .

- Seu porco miserável capitalista . Onde anda a amizade ? E os velhos tempos ?

- Estou fazendo isso pelos velhos tempos , cara . Caso contrario já teria aberto sua cabeça com isso aqui .

Pensei em agarrar seu pescoço , mas ele estava na vantagem com aquele pedaço de pau nas mãos . Me virei como um cão derrotado com o rabo entre as pernas e sai .

Me sentei no estacionamento pensando seriamente em puxar o cabo , o plugue , zerar o servidor ...o suicido parecia bastante reconfortante . Juntei algumas barganas sob a luz artificial do estacionamento e enrolei um cigarro com um pedaço de uma propaganda de vende-se colada na parede . Me sentei com as pernas estendidas esperando , só esperando. Pelo que , Jesus ?

Foi então que essa voz veio acompanhada de um fedor de noite . Vocês sabem , o cheiro de cigarro e bebida barata misturados ao suor . Uma mão surgiu na frente do meu rosto me entregando uma garrafa . Tomei um trago sem levantar a cabeça para ver de quem se tratava .

- Esta tudo bem ?

Perguntou essa voz feminina embargada e rouca .

- Poderia estar melhor …

Respondi , dando outro trago no whisk .

- Mas também poderia estar pior , não acha ?

Foi uma puta pergunta boa aquela . Levantei meu rosto e fitei o seu . Ele estava emoldurado pela lua cheia . Não havia sorriso ali , só uma boca de lábios finos e batom vermelho , muito batom vermelho , borrado e escorrido . Na real , parecia mais sangue que batom . Ela escorregou as costas pela parede e se sentou ao meu lado , depois aconchegou a cabeça no meu ombro . O vento soprou e entrou pelo buraco na sola do meu tênis . As pernas roliças da bonequinha maltrapilha ao lado estavam envoltas em meia calça preta . Parecia que havia acabado de trepar com um gato . O sino da igreja matriz tocou . Doze badaladas .

- Hey , você tem um lugar para dormir ?

Perguntou a moça . Disse que sim .Ela disse que não .

Mas era ela quem tinha a garrafa .

- Porque não vem pra minha casa ?

Em meio a um suspiro de derrota aceitou o convite .

- Tudo bem .

Mas antes tinha um trabalho a fazer , um ultimo trabalho antes de fechar seu turno . Seguimos a pé em direção ao oeste . Paramos de frente para um prédio , um aglomerado de escritórios amontoados uns sobre os outros .

- Espere aqui …

Disse ela , tirando da bolsa um desodorante roll on e balas de hortelã . Me esticou uma que logo botei na boca . Ela fez o mesmo .

- Você não se sente traído ?

Perguntou a boneca maltrapilha , antes de passar pelo porteiro .

- E porque me sentiria ?

- Desde criança nos foi prometido tanto . '' Podem ser o que quiserem : astros do rock e atores de cinema . Celebridades mundiais '' E no final das contas não passou tudo de uma grande mentira …

O porteiro , antes de deixa la passar pediu para apagar o cigarro . Ela obedeceu depois de uma longa tragada .Com a sola da sandália pisou na bituca .

- No final das contas , somos o esterco que movimenta o mundo , não mais , não menos . Nosso proposito é servir de adubo para as plantas . Mas ninguém nos disse isso …

E lá se foi ela . Sua saia de couro rosa muito pequena , suas meias calças muito rasgadas , a maquiagem borrada , a falta de esperança . Só mais uma entre tantas outras putas baratas nesse mundo cão . Me sentei na outra calçada , num ponto de ônibus e fiquei imaginando em qual daqueles andares estaria ela , malhando outro dia de sua vida para viver . Ou seria sobreviver ?

DICA DE FILME : Dois Perdidos numa noite Suja (2002)

08/10/2014

13h51m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 08/10/2014
Código do texto: T4991764
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