A coisa

Quando eu vi a coisa pela primeira vez fiquei espantado. Aliás, espantado é pouco! Nunca tinha visto algo tão medonho! Rastejava-se pelo chão, balbuciava palavras sem nexo e, às vezes, gritava de dor. Eu estava quase chegando à casa da minha namorada quando uma velha manca se aproximou e dissecou a coisa:

- Veja esta pobre criatura! Era uma pessoa bondosa, até. – apontava a velha com seu dedo indicador magro e torto.

- Isto era uma pessoa? Mesmo? Não, não pode ser! – disse indignado e apertei os olhos a fim de enxergar algo humano, mas não consegui...

- Não, não mais. Por incrível que pareça já fora um homem e se chamava Heleno. Agora vive igual um animal asqueroso pelo chão, reclamando e amaldiçoando a mesma pessoa todos os dias. Mas, na verdade, não sabe que amaldiçoa a si próprio! – Espantado, jovem? - A velha me encarava com os olhos arregalados.

Não consegui dizer nada. Apenas olhava freneticamente da mulher para a coisa.

- Curioso, não? – disse a mulher. Pois saiba que a criatura grita e reclama o tempo todo e mal conseguimos entender o que diz. A única palavra que sai perfeitamente, se prestar atenção, é um nome: Clarice. A mulher pelo qual Heleno sempre fora apaixonado. Infelizmente, ela não conseguiu amá-lo até o fim, como prometera. Desde então, Heleno vem se matando todos os dias. Antigamente era sofrido vê-lo magoado caminhando a esmo pelas ruas aqui do bairro. Como é dolorido ser largado por alguém que se ama intensamente! Eu também já passei por isso, mas soube lidar... E quem nunca sofreu por amor que atire a primeira pedra, não? Ele já passou por tantos estágios, coitadinho. Já sofreu e chorou até não poder mais. Seu rosto ficou inchado, seu coração apertado e lhe faltou o ar muitas vezes. Procurou por Clarice e implorou por seu amor outras tantas. Foi maltratado e humilhado, mas não ligou para isso. Tentou até se matar, mas não conseguiu. Algo o bloqueava. Será que era covarde demais? Eis que a mágoa foi passando e a outra face da moeda acabou sendo revelada: Heleno tinha ódio de Clarice por tudo o que ela havia lhe prometido e não chegara a cumprir, por todas as palavras doces que dissera e por todos os carinhos e beijos ternos. Odiava-a mais do que tudo no mundo! E cresciam chamas dentro dele. Heleno botava fogo pela boca e queimava tudo em sua volta para depois respirar as cinzas com prazer. - Deveria matá-la? - Arrancar o coração de pedra daquele peito ingrato? Tentou, mas também não conseguiu. Então, torcia todos os dias para que aquela mulher maldita morresse de alguma fatalidade. Heleno esqueceu-se de Deus várias vezes. Não olhava mais para o céu e para o sol, pois tudo o que pediu, não recebeu. Soube que não era mais humano quando tentou puxar o último filete de luz para dentro de seus olhos, e não tinha mais forças. Ele se transformou em algo sem forma e sem calor que vaga por aí como um espectro pelo simples fato - digo simples porque realmente o é - amar a si próprio. Heleno não entendeu que, antes de tudo, deve-se amar a si mesmo e depois os outros. Podemos sofrer, sim. Mas não nos entregar por completo. Entregar aquilo que nos é mais valioso: nossas vidas. Ele deixou de existir mesmo estando nesta Terra, pois já morreu aqui. Agora só aguarda a sua segunda morte.

Ouvi cada palavra sem tirar os olhos da coisa. Percebi que agora chorava baixinho como criança, e era um choro agudo e dolorido. Senti meu coração apertar e percebi que meus olhos já estavam marejados de lágrimas. Olhei para o outro lado da rua e vi que Marina, minha namorada, já estava me aguardando no portão de sua casa e fazia sinal para que me apressa-se. Quando olhei para a mão de Marina percebi, de relance, que o anel de nossa união não estava mais no dedo dela. Meu corpo congelou instantaneamente e olhei para a velha. Ela me fitou com os olhos bem apertados e invadiu minha alma.

- Qual o seu nome meu querido?

- Bru...Bruno. – disse gaguejando

- Muito bem. Espero que continue sendo o Bruno depois de hoje. Parece que o dia vai ser um pouco pesado pra você, hein? Digo isso, pois não vai querer trocar seu nome para Heleno, vai? – disse a velha me encarando novamente.

Olhei pra baixo e fiquei pensando por um momento. Muitas coisas se passavam pela minha cabeça: a tal da “coisa” com aquela história toda, Marina, o amor da minha vida, a velha estranha com suas palavras reveladoras. De repente senti meu celular vibrar e vi que recebera uma mensagem da minha mãe: - “Não se atrase para o jantar! Seu pai voltou de viagem e quer te ver, tá? Vou preparar aquela torta de frango que você adora! Te amo! Beijos, mamãe.” - Sorri e olhei para o céu. Estava bonito demais! O sol batia bem forte nos meus olhos. E como era quente! –levantei cabeça e olhei seriamente para a velha:

- Não vou, não. Pode deixar! – sorri de canto de boca.

Stephany Christini
Enviado por Stephany Christini em 25/10/2014
Código do texto: T5011802
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