Apuros na Noite

Eu, meu irmão Carlos, Toinho e Paulo Joaquim (o Pejota), estávamos sentados em uma rocha fincada na lagoa. A conversa fluía pelo mundo dos absurdos, tipo de assunto que me deixava os cabelos arrepiados e o corpo todo encolhido, protegendo-me Deus sabe lá do quê.

“E eles sabiam disto!”

As águas escuras espelhavam na noite fria e ondulavam placidamente, enrugando uma lua dourada. A rocha era o nosso navio imaginário. Há pouco mais de meia hora tínhamos embarcado ali; custou-nos apenas dobrarmos a barra de nossas calças, mergulharmos nossos pés na parte rasa e, pronto!, já nos encontrávamos a bordo.

Pra explicar como tudo isso começou iniciemos com a apresentação dos nossos marujos. Sou o mais novo do grupo e isto credenciou-me a pecha de marinheiro de primeira viagem. Mal começavam as férias de julho, eu me “debandava” para os lados daquela cidade cercada de serras e mato por todos os lados. Acabei de completar dez anos. O mano Carlos é um ano mais velho. Toinho e Pejota, nossos parceiros, parecem ter a mesma idade e, se muito, estão dois verões à nossa frente. Os três residem há muito no belíssimo lugar.

Cedo observei que eles têm grande apreço por mim e, se você mora em cidade grande, é fácil compreender que toda a simpatia nasceu devido ao meu vislumbre pela vida rural. A sigla MC caiu-me como um pijama, acho confortável o apelido abreviado de "Menino da Capital".

Rolava entre os nativos a história do Marinheiro Cospe-Fogo: um homem que aportara em terra firme após longos anos atravessando mares até fixar morada nas imediações do povoado. Enjoou de vez do balanço das ondas e resolveu levar vida normal.

Certo dia o lugarejo vestiu-se de festas para as comemorações do seu padroeiro e barracas foram montadas às margens da lagoa, deliciando a todos os festeiros com boa dança e comidas típicas. No meio dos festejos, vestido todo de branco, o velho marinheiro se banqueteou com um prato de baião-de-dois acompanhado com bisteca de porco. Eis que apareceu um garoto com um frasco escuro nas mãos dizendo ser manteiga-da-terra. E foi um tal de moço compre um pelo amor de Deus, preciso ajudar os meus pais, até que ele comprou, muito mais pela vontade de acrescentar sabor ao seu paladar. Despede-se do pequeno ambulante e derrama boa parte da camada pastosa sobre a comida ao mesmo tempo em que olha furtivamente para um casal de dançarinos. Quando leva o garfo à boca, procede de maneira rápida, servindo-se de uma boa porção. Súbito, sente a fronte afoguear-se, a goela parece ingerir um punhado de brasa até que, uivando, corre como um louco rumo às águas para refrescar a boca em chamas. Em sua corrida alucinada, tropeçou num toco de pau e bateu com a cabeça na quina de um barco, que estava atracado nas bordas da lagoa, e caiu sem vida nas águas em repouso. Apurou-se de imediato que a substância que ele havia ingerido tratava-se de picante molho de pimenta malagueta. O garoto, após o incidente, escafedeu-se sem deixar vestígios.

“E eles sabiam disto!”

Toinho atirou uma pedra na água e o barulho inesperado atormentou-me o espírito. Riso Geral.

"MC, dizem por aí que o Marinheiro Cospe-Fogo ficou de retornar, a fim de prestar contas com o tal menino da pimenta. Qualquer garoto forasteiro na faixa de dez anos de vida já é um grande suspeito".

"Ponto, me ferrei!", pensei quase em voz alta, pois eles sentiram minha aflição.

De certa forma não entendi por que mudamos de navio uma vez que, nas férias passadas, navegávamos num tronco de cajueiro deitado nas proximidades do riacho Tiziu, assim batizado por tratar-se de um corredorzinho de água sussurrando entre as pedras. A brincadeira ali era completa. Um braço do tronco servia de tombadilho, outro de convés. Sem contar a grama rasteira que o circundava, dando o aspecto de um verdadeiro mar. De quando em vez, um ou outro fingia nadar, contorcendo todo o corpo e encenando longas braçadas. Gostoso era quando a gente capturava crocodilo no braço. É, o nosso mar tinha crocodilo, sim! Empolgante era o nosso nado em disparada, temendo um cardume de piranhas que nos perseguia com seus dentes afiados. O melhor da aventura era a presença do sol flamejando no céu, onde de tudo se via, desde a cobra repulsiva ao preá escondendo-se temeroso.

“E eles sabiam disto!”

"Em noite de lua cheia como esta, é bem provável que o Marinheiro Cospe-Fogo apareça com sua bocarra expelindo brasa", alfinetou-me friamente o meu irmão.

"A maré hoje tá calma, mas parece que ali, próximo às cordas de salsa, forma-se um intenso clarão, como se fosse uma labareda", a voz grave do Pejota assumia ares de um exímio grumete.

Uma brisa deslocando-se do lado norte projetou-se contra o meu corpo, já transido de pavor. Olhei para a velha cadeia, distanciada um pouco, vendo-a não mais como o arsenal de nossa armas: julguei a luz que saía de sua minúscula janela como se fosse um dragão vomitando fogo de suas entranhas.

“E eles sabiam disto!”

"As águas estão muito silenciosas pro meu gosto; quietinhas deste jeito, pode ser que não venha boa coisa daí", profetizou Toinho criando um suspense de tirar o fôlego.

"Eu me pergunto: onde andará o tal menino que enganou o Marinheiro? Por causa de sua má conduta, ficam comprometidos todos os meninos que vêm de fora, principalmente os que contam com dez anos de idade", foi a vez do Pejota atingir-me como uma bala de canhão.

Adiante, até onde minha vista alcançava, a aragem provocava um torvelinho nas ondas, produzindo círculos concêntricos, bem no lugarzinho em que a lua refletia um rastro de luz. E, tanto pela hora ou mais precisamente pela mudança do tempo, a ramagem que orlava a lagoa parecia encoberta por uma sombra vaporosa. O mano Carlos sacudiu uma vara contra a água, como se tentasse cravar uma âncora ao fundo.

"Sei não! A gente acostumou, mas qualquer outro já estaria se pelando de medo", ironizou Pejota , ciente de que acertara o alvo em suas provocações.

“E eles sabiam disto!”

Apesar do pânico, a noite estava formidável! O lusco-fusco celeste era um primor e a calmaria das estrelas contrastava com o meu corpo em ebulição. Pus a mão em uma elevação da rocha, retirando o peso sobre a perna, que formigava. Foi quando vi de relance um casal de namorados chegar e, meio que em câmera lenta, sentar-se no chão arenoso. Seus corpos estavam no sentido oblíquo de nossa direção, paralelos quase aos nossos costados. Antes de trocar um abraço bem apertado, o rapaz despiu-se de sua jaqueta e colocou-a de lado, a sua cor branca fosforescendo no escuro.

"Arre, a mudança do tempo deve ser um mau presságio! Não será uma bola de fogo flutuando ali à nossa frente?, desta vez o golpe veio do Toinho.

A lufada de ar foi tão forte que o bambuzal rangeu seus canudos, roçando uns sobre os outros, desmanchando uma colônia de vaga-lumes que voava em círculos.

A correnteza formada, como o fluxo de uma maré, provocou uma série de marolas, reverberando, como uma resposta ao açoite dos ventos. Uma nova rajada envergou abruptamente os arbustos e criou um redemoinho no centro da lagoa. Da escuridão, infiltrando-se na trilha angulosa originada pelas centelhas da lua, surgiu uma disforme nódoa branca, assomando como uma figura de braços dessincronizados, tangida pelo furor da ventania, aproximando-se mais e mais do nosso navio.

Cabeças ergueram-se, corpos se retesaram e bocas emudeceram. Na evolução da bizarra aparição, pernas alongaram-se e não foi preciso muito tempo para que três amedrontados marujos abandonassem o navio, corressem desastrosamente e, quase atropelando o casal de namorados, gritassem a plenos pulmões:

"É o Marinheiro Cospe-Fogo, ele voltou!”

Em meio a todo o motim e agitação, mantive-me calmo e, de certa forma, irreverente. Ri a valer daqueles desertores. Respirei fundo, num esforço tremendo encurvei-me e, com a ponta dos dedos, fisguei o casaco branco do rapaz enamorado que, naquele exato momento, praguejava furiosamente contra os fujões atrapalhados.

Permaneci um bom tempo contemplando o negror da noite, ouvindo o coaxar intercalado dos sapos. Não me causou nenhum espanto a cena fantasmagórica provocada por aquela peça de vestuário.

“Disto eu bem sabia!”

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 02/11/2014
Código do texto: T5020377
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