Buscando a Mensagem de Deus

A ideia inicial era percorrermos a pé o longo curso que nos defrontava, no frescor de uma manhã que prometia um sol esplêndido. A vista era encantadora e enchia-nos de uma paz indizível! Há muito programáramos aquela excursão e, adiando uma ou outra vez, aconteceu finalmente de tudo dar certo e nos encontramos repletos de energia no local previamente combinado. Éramos três: eu, o Rubinho e o Danilo; aventureiros de meia tigela, mas admiradores das obras da natureza. Tudo avaliado, carregávamos em nossas mochilas o suficiente para bancar a nossa peregrinação e alguns objetos auxiliares como alguns livros, cordas, enxergões ou coisas do gênero. Não iríamos escalar algum topo desafiador nem pormos em risco as nossas vidas. Era, seguramente, uma trilha para contemplarmos as belezas naturais e enchermos nossos pulmões de ar puro.

Muitos de nossos colegas aproveitaram aquela temporada de férias para conhecer uma nova praia, visitar parentes distantes ou mesmo permaneceram em seus bairros praticando esportes ou pondo alguns atrasos em dia. O nosso semestre escolar exigira muito de nós e a compensação pelo nosso desprendimento teria que valer a pena e isto chegou a ser uma promessa coletiva. O local que escolhêramos não era longe, coisa que de carro gastaríamos em torno de dois dias para percorrê-lo em sua totalidade, mas preferimos a jornada ao natural, pois entendíamos o quanto era importante para o equilíbrio mente e corpo.

E ali estávamos! O destaque no primeiro instante evidenciava-se nas linhas que contornavam a serrania, uma silhueta desalinhada limitando lindos contrastes em azul, misturando-se à crespa vegetação. À altura em que chegamos, vislumbrávamos uma paisagem tipicamente selvagem, uma analogia há um tempo da origem da humanidade, livre dos incômodos do dia-a-dia. Cruzavam o céus um bando de pássaros projetando uma manobra amigavelmente elaborada, com o intuito de encher nossos olhos de entusiasmo. O vento enroscava-se por entre os labirintos das pedras, zunindo festivamente à nossa volta. Alongando mais ainda nossa vista em direção ao nascente, rutilava um sol energizante como uma pílula antiácida na abóbada celeste. A linha do horizonte parecia acompanhada pelo cortejo de árvores, com suas copas bojudas, e mais adiante a terra deixava-se rasgar por um talhe de água prateada, abarcando-a na forma de um lago.

Danilo achegou-se um pouco e, usando de todo o tempo para formular a pergunta, soltou: “Você não acha que por trás de tudo isto não existe uma grande mensagem de Deus?”. Sim, concordei em silêncio com o meu dileto companheiro. A sua enfática observação há muito rondava-me o espírito, inquietava-me os pensamentos e deixava-me sempre absorto em reflexões. Lógico que toda a estrutura de nosso planeta foi criada para nos remeter a considerações sobre o porquê das coisas, suas mutações e suas consequências. Costumo dizer que por trás de todo o presente que recebemos, há uma simbologia representada nos atos do doador que espera que compreendamos o seu significado. Há uma silenciosa tendência para que despertemos o sentido da sua escolha e uma ansiosa espera pelas linhas de nossa percepção. E, agora, contemplando a dádiva portentosa do nosso Criador, dou-me conta do quanto Ele cogitou para nossa satisfação.

Pegamos um mapa e o estendemos sobre a saliência de uma rocha para melhor nos certificarmos sobre o nosso próximo passo. Ao identificarmos o ponto em nos encontrávamos, visualizamos o sítio que nos iria alojar e calculamos distar ainda uns pouco quilômetros mas, ajudados pelo tempo que permanecia agradável, em menos de duas horas chegaríamos lá apressando um pouco os passos. Rubinho, que permanecera muito tempo calado, ajustou o boné à cabeça e logo após relatou-nos uma lenda que rolava o mundo há muito e a mesma fora-lhe repassada pelos pais, por meio de uma literatura editada por Leonardo Boff, teólogo e escritor:

“Com o propósito de saber como andava o espírito de solidariedade entre os humanos, Júpiter o deus criador e seu filho Hermes, disfarçaram-se de pobres e começaram a peregrinar pelo mundo afora. Nem sempre lograram boa receptividade onde chegavam, posto que eram maltratados por alguns e rechaçados por outros. Doíam-lhes todos aqueles maus tratos como se fossem cão lazarentos de casas abandonadas, recebendo toda a sorte de privações.

Após muito tempo perambulando às cegas, enveredaram por terras onde a fama de seus moradores caracterizava-se por seu caráter rude. Tratava-se da Frígia, província das mais isoladas e pobres do Império Romano, lugar para onde eram remanejados rebeldes e criminosos.

Sucede que eles passaram por uma cabana que abrigava um casal de velhinhos - Báucis (em grego, delicada e terna) e Filêmon (amigo e amável) - e ali deram o sinal de sua presença. Qual não foi a surpresa, quando Filêmon saiu à porta e sorridente foi logo dizendo: forasteiros, vocês devem estar exaustos e com fome. Entrem A casa é pobre mas aberta para acolhê-los.

Báucis ofereceu-lhes logo duas cadeiras de aspecto rústico enquanto Filêmon acendeu o fogo. Báucis esquentou água que buscara da fonte que jorrava logo atrás de seu casebre e começou a lavar os pés dos andarilhos, enxugando-os com o seu avental roto e remendado. Com legumes e todo o toucinho que lhes restara, fizeram uma sopa suculenta. Quase sacrificaram o único ganso que tinham mas os imortais o impediram com determinação. Por fim, ofereceram a própria cama para que os viajantes pudessem descansar. Isto foi o suficiente para encher seus olhos de lágrimas de comoção.

Nisso sobreveio grande e inesperada tempestade. As águas subiram rapidamente e ameaçando a tudo e a todos. Quando Báucis e Filêmon quiseram socorrer os vizinhos, ocorreu grande transformação: a tempestade parou e de repente a pequena choupana foi transformada num luzidio templo de mármore, um teto de ouro reluzia com um sol recém-chegado. Júpiter e Hermes então mostraram finalmente quem eram, divindades nos esplendor de sua glória. Báucis e Filêmon ficaram estarrecidos e ajoelharam-se a sua frente num ato de adoração.

Júpiter, senhor do céu e da terra, do sol e dos astros, após aplacar a ira dos ventos, foi logo dizendo: por causa da hospitalidade de vocês façam um pedido que eu quero atender em forma de agradecimento. Báucis e Filêmon, após um pacto silencioso, confessaram em uma única voz: o nosso desejo é servir-vos nesse templo por toda a vida.

Hermes, por sua vez, acrescentou: quero que façam também um pedido para que eu manifeste a minha gratidão. E eles como se tivessem combinado previamente, responderam: depois de tanto amor, concórdia e cumplicidade, gostaríamos de morrer juntos.

Seus pedidos foram armazenados sob a promessa de breve cumprimento.

E aconteceu que durante muito tempo o casal de velhos hospitaleiros ofereceu seus préstimos às exigências do templo, até enquanto durou o fio condutor de suas existência. Um dia quando estavam sentados no pátio, à tardinha, de repente Filêmon viu que o corpo de Báucis se revestia de ramos e flores da cabeça aos pés. E Báucis viu também que o corpo de Filêmon também se cobria de folhas verdes. Mal puseram despedir-se um do outro. Filêmon foi transformado num enorme carvalho e Báucis numa frondosa tília. As copas e os galhos se entrelaçaram no alto. E assim abraçados ficaram unidos para sempre.

Os mais velhos até hoje repetem a lição tirada do exemplo do casal: quem dá guarida aos peregrinos, o estrangeiro ou pobre sem segundas intenções, hospeda a Deus”.

Detive-me por um momento em profunda análise sobre o que ouvira e fiz a ligação com algumas instâncias de minha vida em que fui obrigado a valer-me de terceiros para alguma acolhida improvisada. Senti na pele as indisfarçáveis posturas de quem supunha levar alguma vantagem, bem como sorvi o líquido da satisfação plena quando alguma alma hospitaleira abrigava-me no mais íntimo do seu coração. Os labores de uma acolhida requerem uma entrega despretensiosa, culminando com o prazer de receber sem esperar algo em troca. Emboramente eu saiba que há sempre um acordo moral para que a compensação aconteça doutra feita em que as situações sejam invertidas. E mais uma vez repicou em meus pensamentos o questionamento de Danilo sobre a verdadeira mensagem de Deus quando ele nos oferta as maravilhas deste planeta para que tenhamos um excelente proveito desta hospitalidade. E um véu cobre-me a visão quando revolvo minha mente e rebusco explicações para comportamentos tão estranhos que envolvem este aspecto. Pessoas que não se respeitam, não procuram identificação alguma, ou simplesmente deixam jogados os necessitados andarilhos à luz da incompreensão e do isolamento.

Meu peito estava em chamas e a aventura que nos esperava prometia ser uma fonte restauradora de nossos ânimos. Descortinávamos uma natureza em festa e tudo conspirava para ritmar alegremente a batida de nossos corações. Nuvens andejas dividiam o céu em nesgas e a luminosidade do dia imprimia uma quietude aos nossos olhos, extasiados de tanta beleza. Íamos seguindo por uma estrada margeada por árvores antigas, seus galhos e ramificações formavam figuras desconexas. Mais adiante um camponês tangia o seu burrego molemente e o chocalho de cabras que pastavam ao longe desviava sua atenção.

Rubinho inclinou um pouco o corpo e, esticando o braço, recolheu um dos tênis a fim de retirar uma pedra que lhe incomodava o passo. Danilo aproveitou a pausa para deliciar-se com a exuberância da campina que verdejava rente, acompanhando nossa evolução. O vento açulou a crina da árvores e o som espalhafatoso de folhas e galhos rangendo estimulou nossos sentidos. Pusemo-nos a caminhar novamente. O ar parecia eivado de doce perfume e a límpida atmosfera enchia nossos pulmões levemente. Olhei o firmamento e por um pequeno ângulo vi que as nuvens formavam um círculo, o azul-turquesa toldava-lhe o fundo como um recipiente para a refeição dos deuses. Pensei na história do nosso teólogo, na magia da hospitalidade, e na mensagem tão especial que o Criador queria que absorvêssemos de sua obra. Aproveitando, então, aquele momento em que minha alma impregnava-se de tanta magia e deslumbramento, cascaviei minha mochila até encontrar meu livrinho de apontamentos e nas páginas onde seleciono várias citações escrevi mais uma, esta de minha autoria: “Acreditar em Deus não é apenas clamá-Lo em momentos difíceis mas, sim, proclamá-lo em instantes de rara felicidade!”

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 02/11/2014
Código do texto: T5020392
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