Astros Autênticos

Olhando o céu buscando a estrela mais cintilante, no sentido de aplacar a dor provocada pela noite incipiente, acompanhada de ausência, Mozza conversava com anjos e deuses. Talvez não lhe prestassem atenção. O pedido não acontecia?! E seus pensamentos vagavam por outras instâncias, mesclados ao barulho da rua juvenil. A cadeira trespassada de vime deixava marcas em suas coxas, o pé inquieto denunciava a ansiedade a dizimar-lhe. O vai-e-vem no portão ao lado lembrava mais ainda a intensidade da solidão, dava-lhe firmeza, sustentava-lhe a certeza. Na sala, a filha insana retorcia-se em seus ataques inexplicáveis, coisas inexplicáveis pela ótica da medicina. Meandros de uma vivência infestada de abalos e queixumes, pendências talvez de casos antes nunca consumados. Se era fiel a Deus? Daqueles lábios a palavra santa derivou, impropérios e reclamos saíam-lhe com em tobogã. Por certo renúncia era terreno inexplorado, um deserto a arder-lhe nos flancos mas, também, de que lhe adiantaria ser diferente? Já tantas vezes discutira, brigando pela melhoria da relação e sempre, ai, a tal da língua ferina, cortava como uma navalha, deixava moralmente em frangalhos o acusado e somente o que ouvia era: “prenhou pelos ouvidos?”. Meu Deus, que raiva, o sacana ainda faz pouco, não foi só isso não, tem mais, muito mais. Onde há fumaça, há fogo. E quando já se sente o cheiro forte de coisa tostada? E o danado tinha rompantes de ator! Vez ou outra “passava mal”, revirava os olhos atestando o quanto era abalado por meu comportamento infame, minha língua viperina, meus gestos bruscos e tresloucados. E encenava bem, o patife. Certa vez, já partia em rumo ignorado quando ouvi o barulho de algo tibungando n’água da cacimba, chapinhando lá no fundo. Ao voltar, gritando pelo seu nome, quase a ponto de pedir desculpas o vi ainda usufruindo dos louros da vitória pois nem sequer tirara os pés do chão, arremessara o balde no grande bueiro enquanto gritava: “eu vou pular, eu vou pular”! Nisto ele era prodigioso! E aquilo tudo me enervava mais ainda, a vontade era de esmurrá-lo, jogá-lo contra a parede até criar vergonha na cara. E pensar o deslize quando me deixei envolver - ainda nos albores do relacionamento - ao engendrar desmanches tipo: "se eu pudesse a guardaria dentro da caixa de fósforos, pois a teria comigo sempre, para qualquer lugar que eu fosse”. A besta aqui engolindo, se achando a tal, a própria miss universo, ah, que tolinha eu fui, grande anta eu sou! Predestinação é uma palavra muito forte e algo me diz tem muito a ver comigo. Droga, uma carrada de anos juntos(?) e sempre a mesma história! Até quando, Deus do Céu? Os filhos foram aparecendo (dizem que os rebentos aproximam o casal), mas cada parto era uma oportunidade para ele desaparecer, dizia partir para novos horizontes, para ganhar dinheiro para o sustento da prole, já numerosa. Faz isso não, compadre! Intervinha gente que não aprovava suas atitudes, pessoas mais próximas ao meu destempero de vida.

Lógico, houve um tempo de calmaria. Já prestes e ser quarentão veio a mudança. Lembro-me do tempo de seus serviços prestados à companhia de eletricidade. Vivíamos mudando de lugarejo para que ele montasse subestações nas várias localidades. Nosso quarto às vezes era uma boleia de caminhão. Percorremos muita estrada de barro ouvindo o ranger pesado da carroceria. Mal nos instalávamos em nova residência, vinham os chamados. A qualquer hora do dia ou da noite. Em algum local caíra um fio prejudicando a iluminação. Batiam na porta incessantemente até ele acordar e a voz do outro lado exigia prontidão. E lá ia o meu homem, resmungando aos meus ouvidos, baixinho para que não ouvissem os de fora, do isolamento momentâneo dos nossos corpos. Isto durante muitos sóis e muitas luas. Chuva torrencial ou céu límpido de nuvens. Sabia destes instantes de acolhedora saudade quando lia romances na minha juventude, mas senti-los era realmente um infortúnio. Ao chegar, lançava-me um olhar de “missão cumprida” e nos envolvíamos no aconchego dos lençóis. E os incidentes sucederam-se. Agora, com mais frequência. As batidas na porta passaram a ser tímidas e espaçadamente. Mal os dedos tamborilavam na madeira, ele já se punha de pé, murmurava qualquer coisa inaudível e sumia no desvão da noite. Precisei escutar muita conversa para reconhecer o intruso de nosso aconchego, o das batidas na porta. Ultimamente era sempre a mesma personagem. Uma figura magricela, olhar batido – como ele poderia estar em todos os lugares de tais incidentes? E, logo ao saírem, porque tomavam caminhos diferentes? E vinham as histórias. Começaram a surgir de todas as partes. Cidade pequena tudo se sabe. O meu homem começou a chegar destas empreitadas cada vez mais cansado, mas tinha um brilho nos olhos diferentes das visitas batizadas por mim de oficiais. O que as bocas propagavam coincidia com as circunstâncias. Daí surgiram os desentendimentos. No início, indagadores, perscrutadores. As respostas, no entanto, ficaram rarefeitas. Não me olhava nos olhos, tremiam-lhe os lábios. A voz adquiriu timbre ascendente, as cordas vocais vibravam incontrolavelmente. Aí, tornou-se um suplício. Os filhos eram acordados com as intrigas veementes, ficavam aturdidos em meio às farpas. A cada nova chamada por intermédio das batidas, eles já despertavam e ficavam inconsoláveis. Os concertos das avarias ficavam cada vez mais demorados. Casos haviam em que era preciso a central enviar mais recursos e eles custavam a chegar ao local. Enquanto isto, ele não poderia arredar os pés dali. “Um oficial nunca abandona o posto!”, dizia-me sarcasticamente.

Moças e rapazes desfilam ruidosamente no outro lado da calçada. A juventude lampeja em seus rostos cálidos. A jovem dos cabelos encaracolados belisca o traseiro do parceiro franzino e todos caem numa gargalhada só. Em frente à sorveteria há uma aglomeração de festeiros, o alarido provocado por eles é uma verdadeira babel. Um carro passa a toda, o som é um tremendo estardalhaço e a rapaziada emite uma sonora vaia. A festa continua, pipocam fogos na praça da matriz, iluminando as torres como um relâmpago. Cães correm espavoridos, as caudas presas às pernas, as orelhas murchas coladas ao corpo. Todos acorrem, agora, à rua do trilho. Mais fogos artificiais cruzam os ares, chuvas de estrelas iluminam boa parte da noite. Os sinos bimbalham efusivamente e uma procissão de brincantes rodeia o logradouro principal. As ruas viram afluentes de um rio humano, mais e mais a massa amontoa-se próxima ao espetáculo. Mozza parece nada escutar, seu pensamento ultrapassa as fronteiras das comemorações. Encontram pouso em alguma estradinha lamacenta, onde as pernas de seu amado tentam vencer o barro úmido e frouxo. As estrelas de verdade mais e mais aplacam a sua dor de ausência, a manhã já se aproxima e traz o cheiro acre do homem que lhe parte o coração.

Rui Paiva
Enviado por Rui Paiva em 04/11/2014
Reeditado em 06/11/2014
Código do texto: T5023462
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