A FÁBULA EXISTENCIALISTA DO PEIXE QUE NÃO ERA SÓ UM PEIXE E QUE DEPOIS CONHECEU UMA VELHA QUE TINHA CERCA DE 260 MILHAS DE IDADE

Dizem que um peixe é só um peixe. Pois se fosse outra coisa seria somente outra coisa e não seria um peixe. Mas se um peixe que é só um peixe tiver características muito distintas dos outros peixes que são somente outros peixes, como por exemplo, raciocinar e se comunicar igualmente aos seres humanos que não são peixes, então, este peixe ainda será só um peixe?

No início ele não pensava nisso. Aliás, no inicio não pensava nada, ou pensava de algum outro modo incompatível com o seu modo de pensar atual, de tal modo que estas memórias não poderiam ser acessadas. Mas desde aquele dia em que um homem que achou que deveria ter ido ao jogo caiu ou se jogou no rio, ele, o peixe, começou a pensar. E isso foi um martírio. Diria, que nem mesmo Hamlet experimentara tamanha crise existencial. Os primeiros dias foram aterrorizantes.

Depois do susto que a sua consciência implantara inconscientemente em si mesma, ele decidiu que deveria apreender com os homens, já que sabia, embora não soubesse como, que pensava como eles. Da margem do rio escutava as conversas dos humanos e se maravilhava com isso. Achava fantástica a forma com que os homens conseguiam se entender, eram realmente geniais. Estava enfim conhecendo os homens, seus desejos, medos e tudo que fazia mover a relação daqueles seres que pensam e amam. Porém, em algum momento impreciso percebeu que já não entendia mais os homens e que eles mesmos já não se entendiam, ou talvez, nunca haviam de fato se entendido e o fato de achar anteriormente que eles se entendiam derivava-se do fato de que ele realmente nunca havia entendido coisa muita coisa sobre eles. Se outrora achou ter conhecido tudo que fazia mover as relações daqueles que pensam e amam, agora estava mais disposto a acreditar que lhe era somente possível conhecer algumas coisas que fazem mover as relações daqueles que pensam que amam.

Nesse momento o peixe queria voltar a ser só um peixe sem saber o que era um peixe. Quando via os outros peixes nadando tão despreocupadamente sentia saudade do tempo que era assim, embora não se lembrasse e nem ao menos tinha certeza se algum tempo ele fora assim. Fazia um esforço danado mas não conseguia se imaginar sendo um peixe que não sabe o que é um peixe. Teve até mesmo a ideia de não pensar mais, talvez se fizesse isso por alguns minutos, o pensamento o abandonaria. Quando achava que estava conseguindo percebia a impossibilidade de saber que estava conseguindo, pois se estivesse realmente conseguindo, então, não saberia.

Cansado de tentar ser o que já não era mais, decidiu se aceitar como realmente era, ou seja, alguém, algum ou alguma coisa que não sabia bem o que era. E estranhamente sentiu que a melhor forma de fazer isso era não desistir de tentar entender os homens, mas também tentar conhecer aquilo que, provavelmente, ele tinha sido. Se com isso não descobrisse quem era, ao menos satisfaria o desejo de conhecer que crescia dentro de si. Assim o fez. Nadou tanto que chegou até o oceano, sem se dar de que tinha saído do rio. Por isso que mais tarde, quando lhe perguntaram se aquele rio ia longe ele respondeu dizendo que atravessava o mundo. E de fato, ele atravessou. Dessas aventuras, só digo que o fez com dignidade. Sempre ouvindo e nunca falando com os humanos pra não correr o risco de ser analisado por cientistas malucos. Conversava somente com outros peixes e afins, embora soubesse que, na verdade, estava falando sozinho. Mas não se importava, pois quanto mais falava sozinho, mais aprendia. Entretanto, sentia-se só.

Mesmo tendo ainda muitos lugares para conhecer e não sentindo-se cansado nem enjoado de sua aventura, achou que fosse hora de voltar. Ainda não sabia exatamente do porquê. Na verdade, não fazia a mínima ideia do porque achava que queria voltar. Contudo, achava e não conseguia negar isso. Quando voltou, as coisas tinham mudado um bocado. Uma fábrica tinha se instalado em uma das margens e muitos peixes estavam morrendo e o os que não morriam tinham um aspecto horrível. Achou estranho que se sentisse bem. Talvez dada a sua condição, teria alguma maior resistência. Pensou se a fábrica teria alguma coisa a ver com o que tinha acontecido com ele, mas quando aquilo aconteceu, a fábrica ainda não estava lá. Porém, certamente o que tinha lhe acontecido teria relação com o fato de ele não ter ficado doente. Se deu por satisfeito. E se a imagem daqueles peixes morrendo daquele jeito não fosse agradável, tampouco lhe era agradável ver eles sendo pescados. Para os peixes, de qualquer forma acabariam morrendo. O prejuízo seria somente para os homens, mas ora, são eles mesmo que poluem o rio, então danem-se pensava o peixe. Continuaria, sozinho, sua aventura. Porém ao passar nos fundos de uma casa, um som não de todo desagradável lhe chamou a atenção. Parou para ouvir, chegou mais perto, mais perto, perto demais e foi pescado sem querer por uma velha quando ela tirou da água, uma camiseta quase tão velha quanto ela e cheia de buracos, que estava lavando no rio.

Já no chão, se debatendo, analisava aquela velha. Por certo havia algo de estranho nela, mas ainda não sabia exatamente o quê. Enquanto a velha caminhava ao redor dele, ele tentou lembrar de todos os humanos que vira na vida e comparar com aquela velha para distinguir o que realmente havia de estranho nela. E a velha continuava rodando, rodando e rodando. Então, num lampejo da consciência, ele descobriu que aquela velha não tinha um lugar certo, além do mais não tinha como definir a idade dela, ao menos não em anos. Pensou intuitivamente que talvez a idade dela fosse medida por milhas, mas, achando essa ideia ridícula a pôs de lado no exato momento em que a velha o pôs dentro de uma jarra d’água. Já dentro de uma jarra, dentro da casa da velha ele, pela primeira vez na vida, se viu obrigado a falar com um ser humano, com o propósito de tentar convencê-la a não ser servido com batatas. E isso, no fim das contas, além de salvar a sua vida, salvou também a existência daquela velha que nunca tinha realmente existido antes de conhecê-lo. E o resto da história vocês já conhecem.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 09/11/2014
Reeditado em 10/11/2014
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