Mais que uma lição, um aprendizado

Lá pelas bandas do sítio do Açaí, vinham as jaqueiras com seus frondosos troncos a migrar por toda a terra. Com seus galhos espalhafatosos na beira do caminho, seus filhos, frutos açucarados, e de quebra os favos que espatifavam-se com o rachar das jacas

A meninada pulava de alegria quando corria de encontro ao velho sítio, de onde vinha um senhorzinho com os seus 78 anos mas com a cabecinha perfeita, o juízo em dia, mas, com uma melancolia: Tinha perdido a sua única filha. Ela o abandonara num dia de finados de uma quarta-feira chuvosa e muito fria.

Seu Leocádio sempre dizia que enquanto vivesse e tivesse forças, iria enfeitar o Sítio do Açaí com poesias, para que pudesse poupar o seu coração e que o seu amor perpetuasse na alegria de poder dividir e frutificar o que tinha de sobra.

A meninada sentava nos banquinhos de troncos de velhas árvores decoradas à cal pelo seu Leocádio. E alí mesmo, com os bagos das jacas rachadas, eles se lambuzavam com a doçura dos frutos e ouviam encantados as poesias daquele velhinho. E os contos sobre as coisas da vida, falava de perdas com a naturalidade do coração, e não guardava mágoas, mas deixava claro aos olhos da criançada o quanto sentia falta de carinho, de afeto e de atenção. Seus olhos lacrimejavam como se o Rio do Alecrim fosse entornar e desmanchar os cílios já branquinhos de seu Leocádio.

E foi num dado momento onde a explícita emoção explodia, que uma menina muito atenta a todas as histórias daquele velhinho, levantou-se e foi em sua direção. Olhou bem fundo para o seu semblante, acariciou os seus cabelos de nuvens e beijou-lhe a face.

Seu Leocádio olhou firmemente para a garota, e colheu de seu rosto uma lágrima que insistia em descer. E em seguida veio a constatação não muito óbvia: Falava o senhorzinho - Você está chorando de emoção, eu sei. Mas eu não conto essas passagens para deixá-la triste, e sim, para ensinar que nessa vida tudo vale a pena. Tudo tem o seu valor, mesmo nos momentos em que a dor nos acolhe de forma inesperada. Mas sempre existirá o sol para iluminar as trevas. Sempre existirá a luz que tudo clareia. Não fique triste, sei que a sua lágrima é verdadeira e que você se condoeu com os meus dizeres, sei que o seu coração é puro e sei que o seu amor para comigo é grande. Não se amofine.

E nesse instante, a menina reagiu, secou mais um pouquinhos de suas próprias lágrimas e disse: _ Seu Leocádio, eu não estou triste, na verdade eu me sinto muito feliz em aprender a dividir as coisas dessa vida, assim como o senhor faz. Eu estou muito feliz em aprender que "A poesia não quer adeptos, quer amantes." (Lorca). E isso me deixou feliz em saber que apesar dessa sua tristeza, vocês se amam, porque a sua poesia é o senhor mesmo. O senhor me passou essa alegria. Não sei se falo direito, não sei se o senhor me compreende, mas quero que saiba que jamais estará sozinho nesse mundo. Porque quero dividir o pouco que tenho com o muito que o senhor nos oferece.

No momento em que o seu Leocádio a abraçou, ele não se conteve e chorou mais um tiquinho, a menina retirou do seu bolso um desenho que tinha feito antes de ir ao sítio do Açaí. Era um lindo sol sem dentes na frente daquele balão amarelo, os raios era avermelhados com um toque de abóbora, as gaivotas eram em forma de "Vês" e ornamentavam aquele céu de azul especial, as plantinhas eram bem verdes com uns pinguinhos na ponta dos galhos em tom rosa e o lago estava cheio de patinhos e ao lado da velha igrejinha, um senhorzinho bem magrinho (em forma de palito) no meio da criançada contava causos e recitava poesias.

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 17/11/2014
Reeditado em 17/11/2014
Código do texto: T5038532
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.