À beira do rio

Todos os dias, às seis da manhã, Conceição junta as roupas para lavar. Elas são depositadas em uma grande bacia. O peso enverga o corpo sexagenário da senhora cansada. Lembrava-se sempre do percurso que fizera durante seus 65 anos. Sozinha, sustentou dois filhos e cria três netos, que lhe foram entregues após o primogênito, Agenor, abandonar a família e fugir. Contam que, em outras terras, ele foi vítima de um acidente de caminhão. Há anos, ela não tem notícias do seu menino.

O peso das roupas é menor do que aquele que a mulher carrega no interior. Os olhos verdes caídos e levemente embaçados pelos anos demonstram o que se passa em seu coração. Embora não admita, Conceição sente-se exausta e, a cada passo, roga a Deus a bênção da partida, mas ele tapa os ouvidos quando a boca da idosa pede clemência. Pé ante pé, ela caminha para um rio que corre atrás do barraco em que vive com as crianças. Descalças, correm ao redor da avó e jogam bola misturada com areia. Ignoram que, por trás da senhora risonha com os cabelos embolados em um coque malfeito, a vida não tem o tom colorido da juventude.

Ao se aproximar do rio, Conceição olhou o seu rosto. Era estranho ver aquelas rugas acentuadas pela crueldade do tempo. Apesar da diferença que notava em suas expressões, ela sabia que, em algum canto, guardava traços do tempo remoto de sua mocidade, vivenciado ao lado dos que já partiram e a deixaram em cima da terra, pisando e andando para construir um mundo que seja suportável. Sentou-se à beira da água e revirou a bacia com roupas sujas. Entre elas, no entanto, havia peças limpas. Tirou um vestido florido que não usava há anos. Segurou-o com força perto do peito. Sentiu um aperto no coração ao ver as golas conhecidas. Puídas pela falta de uso, elas conservavam lembranças.

- Ceição, venha dançar. Temos mais uma noite para aproveitar. Amanhã, é dia de voltar ao trabalho – chamou José Antônio, seu marido. Eles haviam se casado na semana anterior e passavam a lua de mel em um sítio perto da cidade em que moravam. Era uma das casas da família de Zé. Todos os finais de semana, os vizinhos faziam uma reunião e se divertiam durante toda a noite. Aquele era o último dia do casal no local, e os amigos tocaram as músicas favoritas dos dois. Envaidecida pela homenagem, ela se levantou e dançou com o companheiro.

Desde esse dia, a vida passou rápido demais. O nascimento dos filhos, o crescimento e abandono, o existir solitário posterior à morte de José Antônio. Trocou a companhia do mundo pelo trabalho. Ocupava-se para se esquecer do passado e do que foi subtraído de seus dias sem que tivesse tempo de retrucar.

Molhou o vestido nas águas transparentes do rio e olhou para ele. Deixou-o a seu lado enquanto lavava as outras peças. O ritmo dos movimentos das mãos estava enfraquecido. As dores pelo corpo aumentavam com o esforço. Notava a sua energia rarear com o passar dos minutos, mas sabia que deveria manter-se forte até o último suspiro. Precisava alimentar as crianças. Eles dependiam da avó para sobreviver, mas ela rezava para que sua sobrevivência estivesse com os dias contados.

Ao depositar os dedos sobre a bacia, tocou em uma jaqueta marrom que pertencera ao seu marido. Fora a última roupa que ele usou antes de sua partida. Morrera com as mãos sobre o peito, pedindo ajuda. Ceição não sabia o que fazer. Pegou o terço com o qual costumava orar e pediu a Deus piedade.

- Pai, não o leve. Pai, me diga, o que está acontecendo com meu Zé? Eu não posso ficar sem ele. Deixe-o comigo. Não. Agora não. Aguenta, Zé. Respira, meu amor. Não seja covarde, Pai – revoltou-se ao perceber o suspiro final do marido. Não soubera socorrer o homem e nem interceder por sua vida junto a Deus. Estourou o fio de náilon do terço e jogou os pedaços sobre o corpo do marido. Odiava a existência de um deus que lhe roubara o companheiro. Queria dizer a ele o quão impiedoso e desleal ele era, mas não sabia como encontrar esse ser no qual acreditava desde a infância. A fé transformou-se em lamento e rancor.

Enterrou-o sozinha com alguns vizinhos. Os filhos, que viviam longe, não compareceram ao funeral do pai. Conceição só reencontrou o primogênito tempos depois, quando ele lhe pediu que cuidasse dos netos. Partira ao deixar a mulher com três crianças pequenas que choravam, com ela, a dor do abandono e da incerteza sobre o futuro.

Soltou a roupa de José Antônio e retomou o trabalho. As lembranças rodeavam o ar em volta da mulher, que deixou escapar shorts e meias sobre a água sem notar o que acontecia com suas mãos.

- Vó, minha bermuda da escola foi embora. Olha ela. Vó, o que está acontecendo? – perguntou João Pedro, o neto mais velho da idosa.

Sem responder ao menino, ela continuou a repetir o movimento que executava ao lavar roupas, mas sua mão estava vazia. Repetidamente, ela ameaçava pegar os trajes de dentro da bacia e continuava a ensaboar o invisível. Suas pernas estavam molhadas por uma mistura de água, sabão e lágrimas, que caíam descontroladamente.

Os dedos da idosa começaram a ficar doídos pela repetição. Seu corpo gelou. Os músculos enrijeciam-se. A respiração tornara-se espaçada e ofegante. O coração bombeava lentamente o sangue necessário. Os olhos pesaram. O rosto estava lívido. A sensação de leveza dominava a mulher. Ela estava novamente no baile em que dançara com o marido em sua lua de mel. Os passos no centro do grupo que batia palmas enquanto o casal rodopiava. O sorriso, o beijo, o lábio quente e umedecido. O neto a sacudiu. Parecia apavorado com a quietude da mulher. Ela queria lhe reconfortar e dizer que estava tudo bem, mas esqueceu-se de como usar as palavras. Continuava a rodopiar com o marido e transparecia plenitude. Sob o sol e amparada pelos braços menino, entregou-se à valsa eterna.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 23/11/2014
Reeditado em 17/04/2015
Código do texto: T5045426
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