Velho João, o filho da bruxa!

Há muitos anos atrás, lá pras bandas do Sertão do Ribeirão da Ilha de Santa Catarina, antiga Nossa Senhora do Desterro, um pescador de dentro de sua canoa, em alto mar, ouviu um choro de criança recém-nascida que vinha de trás de um milharal, em terra firme. O lugar que ficava atrás de uma casa, dava de frente para o mar.

Lá em alto mar, o pescador que era o mais velho entre outros que o acompanhavam, chamou a atenção dos amigos.

- Vancês tão oivindo o queu tô?

Um pescador retrucou enquanto outros riam:

- Tô não cumpadi... O cumpadi que me dixcurpe, maix deve sê cousa da tua baça, visse?

O pescador que tinha o costume de perder as estribeiras ao ser provocado, levantou de onde estava e falou:

- Poix intão acabou a pexcaria, vamo todo mundo de vorta pra bera da praia e vamo vê se isso é cousa da minha cabeça, visse cumpadi!!!

Como era muito conhecido pelos seus rompantes que eram de deixar qualquer um sem saída, ninguém quis contrariá-lo e voltaram para ver que choro era aquele que só um dos compadres estava a ouvir.

Ao aproximarem-se do local, seguindo o choro de criança, que ficava cava vez mais próximo, para surpresa de todos, o pescador mais velho e muito irritado, o Zé Tião, encontrou uma criança recém-nascida sobre as palhas de uma plantação de milho que havia de frente ao mar.

A criança estava enrolada numa coberta de pluma de pato. Era um menino de seus olhos grandes e cheios de lágrimas que banhavam o seu rostinho miúdo. Ele olhou os pescadores um por um e mostrou um discreto sorriso, feito um ser encantado.

Para a admiração de todos, os pescadores mais novo do bando pegou o menino e o abraçou fortemente como se já o conhecesse há muito tempo. Foi então que o bando de pescadores fez um grande saragaço.

E, com todos falando ao mesmo tempo, ninguém percebeu que o menino calou e dormiu tranquilo no colo quentinho do Zezé.

Depois do saragaço veio a calmaria que organizou as ideias dos pescadores, que mais calmos, foram à procura de uma solução. Alguém precisava ver se era menino ou menina. Foi então que o seu Vivinho, o mais velho de todos, teve a ideia de levar a criança para alguma mulher da redondeza.

Além de precisar saber se a criança era menino ou menina, eles também pensaram ao mesmo tempo que o recém-nascido deveria ser benzido. Logo veio à cabeça do Zezé, a Dona Sissa, que uma benzedeira de mão cheia.

- Gente, acho que além de ver se essa criança é isso ou aquilo, se ela tivé embruxada vai tê que sê benzida. Intão vamos logo pra casa da sinhá Sissa, vamo?

Dona Sissa pegou a criança e viu que era um menino e o olhou da cabeça aos pés, sem nada encontrar. Depois fez sobre ele uma reza de proteção, que era assim:

"São Pedro, salva-me bem que me vou.

Jesus Cristo foi Batizado.

Na arca de Noé me meto.

Com as chaves de São Pedro me fecho,

Para que nenhum mal te aconteça.

E tudo quanto perder, apareça.

A Jesus me entrego,

E a Jesus um credo rezo.

Amém!”

Depois desse benzimento, Dona Sissa colocou um amuleto de proteção no pescoço do menino, para que ele ficasse protegido de todos os males do corpo e da alma. Mas alguém precisava adotar o menino... E quem faria isso? O Zezé que, ao recusar a ideia, ouviu da Dona Sissa:

- Mô fio, agora toma qui ele é teu...

O menino, que parecia entender o que a benzedeira falou, se agarrou no braço esquerdo do Zezé parecendo querer ficar com ele. Por sua vez, ao olhar nos olhos do menino, Zezé soltou uma frase que surpreendeu os amigos.

- Ele vai se chama João!

Assim, o tempo passou e Velho João, aquele que nasceu menino lá pras bandas da praia do Ribeirão, acordou de madrugada com um barulhão daqueles, vindo de sua cozinha. E, pé por pé, Velho João saiu de seu quarto, desceu a escada, e assustado com o que seus olhos viram, se agachou e congelou bem no meio da escada.

Agachado e agarrado ao corrimão da escada, Velho João viu um bando de bruxas no maior saragaço. Elas tagarelavam suas tramas bruxólicas, que de tão alto, dava de se ouvir lá do outro lado dos confins do mundo. Nesse momento, a bruxa mais velha do bando falou alto. E para chamar a atenção da bruxarada, gritou:

- Meninas... Tô sentindo cheiro de homem! Vassoura, vassoura matreira... saia já daí e veja quem é!

Nesse instante, a vassoura que estava encostada atrás do fogão à lenha, espionando tudo, saiu correndo e se meteu entre as pernas do Velho João. Ela subiu bem alto... e dando uma rodopiada pela cozinha, saiu janela a fora.

E lá se foi a vassoura levando o Velho João, aquele que um dia apareceu menino lá pras bandas do Ribeirão. A vassoura voou por todo o Ribeirão da Ilha de Santa Catarina, com o Velho todo desengonçado. Os dois foram até o Centro da antiga Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, e lá das alturas sobre a velha figueira da Praça XV, Velho João viu um bando de crianças em círculo, onde alguns palhaços se apresentavam com suas palhaçadas a fazer as suas estripulias, cantando e dançando.

Lá das alturas, Velho João, ainda tonto, caiu bem no meio dos palhaços com suas travessuras. Foi então, que a plateia riu mais ainda ao pensar que aquilo fizesse parte da palhaçada.

Velho João, que de bobo não tinha nada, saiu dançando feito criança, entre o riso da gurizada. Envolvido nesse mágico momento, ele até esqueceu das dores no joelho e nas suas costas arcadas.

Depois de muito pular, cantar e dançar, Velho João sentiu uma saudade louca de seu travesseiro, o seu maior companheiro. Enquanto isso, lá do outro lado da velha figueira, escondida atrás do tronco de uma seringueira, a vassoura matreira, ao ver a alegria estampada no semblante da gurizada, beliscou um fiapo de palha e matutou:

- Ah... Velho João, Velho João, chega de brincadeira. Nunca vi dentro de uma só pessoa tanta felicidade! Meu menino, é hora de parar com essa brincadeira. É por isso que...

E Mal a vassoura acabou de matutar, saiu em disparada e se meteu entre as pernas do Velho João, voando de volta lá para a praia do Ribeirão.

De repente, Velho João se viu embaixo do colchão, com seu pijama listrado e todo amarrotado. Assustado e agarrado ao velho travesseiro, o seu maior companheiro, sussurrou para consigo:

- Velho João, velho João o que que é isso homem? Já sei, continuou ele - devo tá sonhando demais. E foi coçando a velha careca que Velho João sentiu um arrepio. Nesse momento arrepiante, ele segurou o amuleto e o apertou bem forte ao peito.

- Jesus, Maria, José... Protejam-me!

Foi então que nesse exato instante, a janela do quarto se abriu deixando entrar pelo quarto adentro uma ventania com cheiro de maresia. Além do vento algo puxou a barra do pijama de Velho João, que imediatamente, num só pulo, enfiou-se embaixo do colchão e lá de fora, dizem que ele pode ouvir em tom alto, alguém lhe falando:

- Velho João, Velho João... Agora ouve tua mãe, aquela te deixou nascer lá no meio do milharal da praia do Ribeirão, e durma em paz mô fio qui eu também te protejo!!! Ahahahaha...

Autoria de Claudete Terezinha da Mata. Conto cênico, elaborado em 2007 e narrado quase sempre em todos as apresentações, sendo esta mais recente. A edição anterior foi feita no blog da Oficina Literária Boca de Leão, na fundação da "Oficina" para mostrar ao seu público iniciante como um escritor necessita proceder numa narrativa cênica ao fazer uso da literatura oral com o auxílio dos elementos de cena, como: Máscaras, roupas e outros instrumentos, bem como, a utilização de planos físicos, tipo e impostação de voz, expressões corporais, delimitação de pausas numa contação de histórias, cuidados com o vocabulário, controle da respiração e mudança da voz na representação dos personagem. Este conto pode ser encaixado em diversas categorias e gêneros - um deles pode ser conto de assombração. (24/07/12)

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A benzedura feita nesta criação é considerada um Responso que faz parte das orações populares rezadas aos santos para que nenhum mal nos aconteça e também para que possamos encontrar coisas extraviadas ou perdidas.

Bruxa da Mata
Enviado por Bruxa da Mata em 06/12/2014
Código do texto: T5060362
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