Máscaras

Acordei pontualmente às oito da manhã para encarar mais um dia dessa rotina que não escolhi. A cada amanhecer, pergunto a mim quem me colocou nessa vida, com essas pessoas, em um cotidiano que muito me desagrada. Mulher, filhos, trabalho. Dormir, acordar. Pagar, receber. Dirigir, caminhar. Ser obrigado a manter o sorriso para não atrapalhar a política da boa vizinhança, com a qual finjo pacientemente me importar. Não posso ser o que quero e nem ter o que busco.

Toco o chão com o pé esquerdo. Não acredito nessa baboseira de pisar com o direito. Para contrariar toda a sorte de magias, encantamentos e superstições, me delicio ao colocar a ponta do dedo e, vagarosamente, encostar toda a sola no piso frio branco, escolhido por Luciana. Ela decide tudo e ousa tentar mandar na minha vida. Satisfaço-me diariamente burlando desimportantes e ínfimas regras como um adolescente rebelde ao experimentar seu primeiro cigarro de maconha ou uma cerveja.

“Bom dia, querido”, ouço a voz embargada da mulher estranha que abre os olhos ao meu lado. Imediatamente, lembro-me de que é a minha esposa, com quem me casei por um impulso do qual me arrependo todas as manhãs, tardes e noites.

“Bom dia”, digo, após vestir a máscara de marido dedicado, delicado e educado. A paciência ficou perdida em alguma das esquinas pelas quais passei nos últimos anos. Não a encontrei. Não me encontrei. Ergo meu corpo da cama bagunçada e sinto-me enjoado. Essa sensação, velha conhecida, é a mais fiel companheira.

“O que vai querer para o café?”, pergunta Luciana, ajeitando os cabelos que caem sobre os ombros. Qualquer homem adoraria a visão matinal, exceto eu. Eu que não sei para onde sigo todos os dias. Fecho os olhos instantaneamente e me vejo andando em círculo. Ela murmura palavras inaudíveis enquanto finjo bocejar. “Está cansado, amor?”, e sorri. Retribuo falsamente o sorriso e balanço a cabeça em confirmação e conformação.

Alternando os pés, abro a porta do banheiro.

“Lucas, eu já te disse para trancar a porta quando estiver aqui”, e xingo e grito palavras pouco civilizadas e mando todos para cantos distantes dos meus. Mentalmente. Por fora, estico os lábios e esboço simpatia ao ouvir do menino que não foi a sua intenção. “Poxa, pai, acordei com dor de barriga. Foi mal.”

“Foi péssimo”, pensei, mas omiti minha opinião. Quando o garoto saiu do banheiro, entrei e tranquei. A chave, por vezes, era a válvula de escape ideal para evitar um rompante ou um surto psicótico. Encaro o espelho. A imagem se desprende de mim e gargalha.

“Fracassado, Carlos. Você não passa de um fracassado. Homem covarde que abandonou o que queria. Lamento por isso e por tudo. Lamento profundamente a sua medíocre existência.”

“Vai para o inferno, desgraçado”. Um soco espalhou cacos de vidro pelo chão. Ao observá-los, percebi meus pedaços lançados pelo tapete. Aquele, sim, era eu. Sem conserto.

“Meu querido, está bem?”, perguntou Luciana, tentando entrar no banheiro.

“Tudo, meu bem. Houve um pequeno acidente. Nada demais. Vou limpar isso aqui.”

Contra a minha vontade, junto o eu espatifado pelo chão. Posiciono os olhos, a boca, os cabelos escuros e bagunçados. Formo-me novamente, ainda sobre o tapete, e continuo a encarar o ser humano partido. Respiro fundo e, lentamente, despeço-me de mim, jogando meu reflexo no lixo. Parecia estar me enterrando a cada vez que abandonava um pedaço do espelho.

Vesti, novamente, a máscara de bom moço. Para a ocasião, mesclei o marido ao pai ideal, gentil, brincalhão. Por dentro, afogava-me. Com a respiração ofegante, lavei o rosto, escovei os dentes e saí do banheiro. Troquei a roupa para trabalhar e caminhei até a cozinha, onde estavam os filhos e a mulher. Trinquei os dentes antes de vê-los. Tranquei os sentimentos.

“O que aconteceu? Ouvi barulho de algo quebrando.”

“Nada, Luciana. Um pequeno acidente. Tropecei e bati com a mão no espelho. Ele quebrou. Não foi grave.”

“Você quebrou o meu espelho? Que inferno. Sabe quanto custou? Vai ter que me dar outro”, berrou.

“Eu te dou, Luciana. Te dou o que você quiser”, respondi. “Só me deixa em paz e cale a boca. É o que peço. Por que me casei com uma pessoa tão diferente de mim? Uma mulher que em nada se assemelha a mim. Perdedor”, pensei, enquanto engolia o café para correr contra o tempo.

Entrei no carro. Pelo retrovisor, vesti a máscara de funcionário exemplar. “Pronto para a merda do emprego que consegui”.

“Fracassado. Covarde. Burro. Incompetente. Não conquistou nada do que queria. Chegou aos 40 anos sem ter nada do que sonhou. Meio homem. Meio pai. Meio amante. Meio profissional. Metade do seu ideal.”

Os pensamentos ecoavam em sua cabeça. Os seus demônios escarneciam a cada quilômetro. Ultrapassava carros, motos, bicicletas. Rápido. Rápido. Tinha pouco tempo para não ter seu salário descontado devido ao atraso. O engarrafamento atrapalhava ainda mais a sua vida. Buzinava descontroladamente. Cada aperto era carregado de emoções. Catarse. A rua tornou-se um eco infernal criado por Carlos, que não se preocupava, pela primeira vez, com os gritos e ofensas à décima geração.

Esquivou-se da multidão e dos incontáveis veículos e cortou caminho por uma pequena rua. Ao chegar em frente ao prédio em que trabalha, Carlos desligou o carro e ficou observando as pessoas e seu egoísmo. Ali, sentado, poderia permanecer até o último suspiro e ninguém o socorreria. Cansado, saiu do automóvel e seguiu para a entrada. Na escada, rearrumou a máscara. Escondeu-se para mais um dia.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 12/12/2014
Reeditado em 12/12/2014
Código do texto: T5067186
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