O Grande Dia

25/05/2007. É noite. O relógio ecoa já suas doze badaladas. Da antiga vitrola, apenas o velho Ludwig Van Beethoven me faz companhia. Este mesmo Ludwig Van que tem sido meu único companheiro durante todos estes anos. Longos anos de espera, tristeza e solidão.

Mas hoje não estou triste. Meu corpo dói, é bem verdade, e estou fraco. Porém que importa a dor? Eis que, finalmente, é chegado o grande Dia. O Dia para o qual têm corrido todos os dias de minha vida desde que ouvi, pela primeira vez, aquela “Moonlight Sonata”.

Ainda me lembro bem. Era um fim de tarde e eu estava sentado à calçada de minha casa. Contava, então, com meus 18 anos de idade. Havia acabado de mudar-me para aquelas bandas e sentara-me ali com a intenção de averiguar os detalhes do novo ambiente. Um vizinho logo se chegou puxando papo, parecia querer, a todo custo, garantir posse de minha amizade. Eu, do meu lado, respondia a suas perguntas muito a contragosto. Sempre tive um temperamento bastante inclinado à solidão, não seria aquele rapazinho chato que conseguiria arrancar-me do meu mundo interior:

-E então, que tá achando da vizinhança?

-Legal.

-Você vai adorar este lugar. É muito animado e as pessoas também são muito agradáveis. É claro que existem as exceções, e eu terei o maior prazer em precavê-lo…

-… (silêncio)

-Ah, prazer, me chamo Carlos.

-Prazer.

O vizinho ficou um bom tempo ali, a falar pelos cotovelos, sem perceber minha aflição em conseguir desfazer-me dele. Em meio a seu discurso fatigante, notei surgirem, de repente, aquelas doces notas de piano. Suaves, de início, quase que inaudíveis, foram, aos poucos, expandindo-se, crescendo no ar até, finalmente, atingirem o frenesi.

Naquele momento eu já nem estava mais ali. Havia sido transportado para outra dimensão, onde não existia mais casa, rua, ou qualquer vizinho intrometido a encher-me a paciência. Apenas a música era real, e ela vibrava dentro de mim a ponto fazer com que me sentisse inteiramente diluído naquelas ondas. Nunca experimentara sensação deste tipo. Perguntei-me que magníficas mãos poderiam tocar daquela forma, como só um deus ou um anjo seria capaz de tocar. Mas sou interrompido em minha apreciação:

-Ei! Tá me ouvindo?

-Hã? Ah! Tô sim…

-Tinha o olhar tão vago… Tá tudo bem?

-De onde vem esta música?

-Ah, a música? Daquela casa bem ali. Quem está tocando é uma garota chamada Alice, todo fim de tarde pratica ao piano, a coitada…

-Coitada?

-É, nunca sai de casa. Tem uma saúde muito frágil, é o que se diz por aí. De resto não sei mais nada.

Desde então, tornou-se hábito sentar-me à calçada todas as tardes para apreciar aquela deliciosa melodia. Se algum dia, por motivo ou outro, ela não tocasse, sentia-me extremamente desapontado.

Depois de algum tempo, uma curiosidade acerca de Alice começou a ocupar-me a mente. Ficava horas a imaginar quem seria aquela que me tocava tão profundamente a cada canção. Seria tímida ou expansiva? E suas mãos, brancas ou morenas? Que expressão carregaria no rosto enquanto tocava? Não sabia absolutamente nada sobre ela, mas, paradoxalmente, sentia como se soubesse tudo. Carregava a certeza de que, fosse como fosse, só poderia tratar-se de um anjo. Percebi-me, então, completamente apaixonado por Alice.

Alimentava a esperança de que um dia a encontraria e, então, ela também se apaixonaria e logo nos casaríamos. Assim poderia tocar apenas para mim todos os dias, enquanto eu a observaria, carinhosamente, sobre o piano. Tudo o que eu mais queria na vida era conhecê-la.

Certa tarde, depois de muito esperar, notei que Alice não tocaria. Fiquei triste, mas me conformei e aguardei ansioso pelo dia seguinte. Só que Alice não tocou no dia seguinte. Nem no outro, nem no outro... O que estaria acontecendo? Porque não tocava mais? Foi com o mesmo vizinho fofoqueiro que obtive a informação:

-Pelo que fiquei sabendo Alice caiu de cama, parece que está mal.

Fiquei aflito, um sentimento de pesar enorme tomou conta de mim. Como desejava estar a seu lado naquele momento...

Aconteceu, então, de eu ter que viajar por um tempo a minha antiga cidade. Não queria ir, queria estar ali, perto de Alice, mesmo que ela nunca o soubesse, mas as circunstâncias obrigaram-me. Quando retornei, procurei logo saber sobre ela com Carlos:

-Ah, então ainda não sabe?

-O que?

-Morreu, a pobrezinha.

-Morreu?

-Sim, há dois dias.

Dilacerado por dentro, corri até o cemitério onde a haviam enterrado, levando comigo algumas flores. Quem imaginaria que no nosso primeiro encontro, em lugar de seu rosto, veria apenas uma lápide com aqueles dizeres: Alice Saldanha de Freitas, 11/02/1932 a 05/01/1949.

Eu, contudo, nunca deixei de amar Alice, assim como nunca deixei a esperança de um dia estarmos juntos. Foi esta mesma esperança que me fez suportar todos estes longos anos de angústia sem forçar despedida precoce desta vida. Um anjo como Alice não poderia estar em outro lugar que não o céu. E hoje, 25/05/07, eis que é chegado o grande Dia: o meu dia de, finalmente, também ir para o céu.

Eleanorrigby
Enviado por Eleanorrigby em 30/05/2007
Reeditado em 18/08/2017
Código do texto: T506959
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