Dois Romances

Um prefácio sobre uma marquise

A ideia deste conto começou em cima de uma marquise no Recife antigo. Eu não era nada além de um escritor suburbano, sem estilo... praticamente desconhecido. Mas isso não me importava. Fazia meses que havia escrito um Romance para um periódico virtual e não me achava capaz de escrever mais nada. Pelo menos foi o que pensei sentado no alto daquele prédio a vários metros do solo. Escrever era o que eu mais gostava de fazer, apesar de ter uma vida paralela, que tentava conciliar com minhas aventuras amorosas e bebedeiras. Beirava os trinta, por mais que não sentisse, ou entendesse o que aquilo significava. O que se espera de um homem com essa idade?...

A capacidade de assumir responsabilidades, constituir uma família, criar filhos... ter um emprego fixo. Eu não tinha nada disso naquela altura e sequer conseguia me fixar com uma mulher por mais de dois ou três meses.

As mulheres que nasceram depois de mim pareciam estar mais adaptadas aos relacionamentos descartáveis e de curta duração tão característicos dos novos tempos, tanto que eu estava sendo frequentemente superado por elas...

Raramente escolhia deixá-las, simplesmente pelo fato de que eu não me envolvia com alguém que não queria manter ao meu lado por muito tempo.

Então me acostumei a vê-las entrar e sair de minha vida, assim como entravam e saíam do meu quarto para buscar um copo d’água depois de uma transa casual. Nunca me incomodei com aquilo. Na verdade, no começo me sentia perdido. Sofria, embriagava-me, escrevia e isolava-me do mundo. Com o tempo me acostumei. As despedidas foram ficando cada vez mais indolores e os finais menos dramáticos. Um homem deve saber aproveitar o melhor de uma mulher no tempo em que ela quer lhe dar o melhor de si. Deve também saber evitar o pior, mesmo que isso signifique uma separação. Acredito que me tornei bom naquilo. Eu as amava enquanto era possível e as deixava ir quando não era mais. Algumas retornavam e me amavam novamente. Algumas se tornaram figuras recorrentes em minha vida e em meus textos. Mas nenhuma delas se demorou muito... é fato.

Tenho certeza que boa parte delas sequer se lembra de minha existência...

outras, acredito que, guardam certo rancor. Principalmente as primeiras.

A juventude e a imaturidade são como álcool. Tornam tudo mais intenso... tornam o amor mais fácil. Mas quando somos jovens, somos incapazes de ver a realidade e de dar valor a coisas simples. Tendemos a dar importância a grandes coisas, a planos complexos.

E são tantas as certezas... ‘Quanto mais certezas você tem, mais estúpido você é’ Meu pai me disse algo assim certa vez.

É fácil ignorar as palavras dos mais velhos quando se é jovem... mas um dia você percebe o sentido por trás delas.É como rever um filme que se viu na infância, anos depois, e só então perceber a ‘moral da história’ com riqueza de detalhes. Hoje eu consigo olhar para trás e perceber muitos dos meus erros e as consequências que eles geraram, as estradas por onde me levaram e que no fim, aquilo tudo era inevitável. Fazia parte do meu aprendizado.

Mas isso é uma ideia espiritualista da coisa. Um pensamento quase indiano de evolução e de moralidade...

Dane-se a evolução espiritual neste momento. Tendo a me perder em minha própria prolixidade de vez em quando. Perdão por isso. Mas, voltando ao assunto... Acredito que hoje lido muito melhor com meus envolvimentos emocionais. Sim, emocionais... porque não? Qualquer mulher que não me conheça pode me classificar como um polígamo (para não usar outra palavra) machista e superficial. Mas me vejo como algo distante disso. De certa forma, amo todas as mulheres que levo para cama. Deixo com elas boa parte de mim. Por isso às vezes me sinto exausto e procuro solidão. Talvez para recarregar, ou para poder ser ‘Eu mesmo’ sem ninguém a criticar meus hábitos estranhos e meu estilo de vida. E eu estava num daqueles momentos, sentado numa marquise de um prédio em decomposição... Não era um momento suicida, mas não nego que fosse um risco a minha vida,

-devido ao meu estado de embriaguez-

No entanto, eu não tencionava matar-me, como você talvez tenha pensado inicialmente. Essa ideia não me passava mais pela cabeça naquele ponto.

A bebida acabara e resolvi descer do prédio, antes que começasse a chamar atenção dos passantes.

Andei até minha casa, abri a geladeira, peguei uma cerveja e resolvi que devia escrever sobre como chegara àquele ponto, quando acordasse.

1

Ela dormia nua em minha cama, deitada de bruços, com os cabelos esparramados em suas costas. Seu braço direito caía fora da cama, ainda segurando um cigarro apagado.

Eu observava aquela cena, sentado no chão, e ao mesmo tempo tentava me concentrar na revisão de algumas páginas que havia escrito no começo da noite. Acompanhava o ritmo pesado de sua respiração enquanto riscava e substituía palavras repetidas ou ajustava uma frase mal encaixada no texto. Tentava manter minha atenção naquela tarefa aborrecida e apelava para o uísque em busca de alguma inspiração. Havia meses que eu tentava escrever um Romance. Um editor ligava duas ou três vezes por semana para me perguntar quando entregaria mais um capítulo. Pouco havia progredido na história, mas restava-me ainda algum prazo. Aquilo para mim era uma guerra. Cada página era uma batalha e a cada dia sentia-me mais distante de um fim satisfatório.

Meu quarto era uma bagunça. Do tipo que só um cara tão desleixado quanto eu poderia conceber. Havia mais coisas espalhadas pelo chão do que em seus devidos lugares. Apesar de tudo, aquele tipo de ambiente nunca me incomodou. Perdido em meus pensamentos, larguei o rascunho sobre uma escrivaninha e abri a janela com cuidado para não acordar a mulher que ressonava ao lado. Eu havia parado de fumar e o cheiro que a jovem espalhara pelo quarto me deixava angustiado... Ela chegara de surpresa, sem aviso de qualquer tipo. Bateu a porta, entrou e se fez em casa, como era de costume.

Tomei mais um gole da bebida e deixei o copo repousando na janela.

Me sentia como se estivesse em uma panela de pressão. Apesar de ser tarde da noite, as paredes eram quentes ao toque e o ar pesado e úmido. Eu sentia que ia me afogar naquele quarto.

Com o corpo ardendo, entrei no banheiro e sentei-me embaixo do chuveiro ligado. Deixei a água me lavar o suor e esperei que ela levasse também os pensamentos que me atormentavam.

“Porque deixei que ela entrasse?”

Balbuciei aquelas palavras enquanto a água escorria entre meus lábios... Fechei a torneira e adormeci ali, sentado e abraçado aos meus joelhos, sem resposta alguma.

2

Acordei e já era dia. Com a pele dos dedos enrugada e o pescoço doendo por ter dormido de mau jeito, me estiquei tentando levar algum sangue aos meus membros doloridos. Então me levantei e tomei um banho gelado. Meu estômago rugia de fome apesar de me sentir nauseado pela péssima noite de sono. Enxuguei-me e joguei a toalha no cesto de roupa suja.

Andei até o quarto e não havia ninguém. Não encontrei nenhum vestígio da mulher pelo apartamento, nem do copo de uísque na janela, nem das cinzas de cigarro que ela havia deixado espalhadas pelo chão.

Esvanecera-se.

Sabei-o, amigos. Tenho a impressão que fica cada vez mais difícil para mim, diferenciar ilusões da realidade. Há momentos em que minhas memórias se embaraçam e meus sonhos se misturam com suas contrapartes mais concretas do mundo material. Esfreguei os olhos e me sentei na cama, ainda nu, com o cabelo encharcado e um terrível gosto na boca. O relógio marcava 11 da manhã e o silêncio vindo das ruas me dizia que era domingo. Por algum tempo questionei a autenticidade de minhas lembranças da visita que eu recebera na noite anterior.

Encostei minha cabeça num travesseiro buscando uma posição em que meu pescoço doesse menos e chequei a caixa de entrada do meu celular.

Não havia nada. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação também.

O computador estava ao lado da cama, desligado. O texto que eu decidira revisar estava sobre a escrivaninha, com alguns riscos e comentários que não lembrava de ter feito... o que não era algo incomum naquela época.

Pensei em ficar na cama o dia todo e esperar pela segunda feira.

Meu estômago, no entanto, questionava essa disposição, o que me fez levantar e ir até a geladeira, onde encontrei pouca coisa que me valesse uma refeição. Fui então até uma janela e respirei o ar vindo do porto... o cheiro de maresia que tanto me fizera falta.

Procurei no armário uma roupa que estivesse menos amassada que as outras, me vesti e desci as escadas do apartamento que eu conseguira alugar em um prédio antigo no bairro de São José. Nunca me interessei por morar em um dos feudos de concreto que se espalhavam por Recife naquele tempo. Lá se erguia um novo prédio em cada esquina. Todos cercados por grandes muros e cercas elétricas. Elevadores e duas vagas de carro por apartamento. Tudo o que a grande classe média recifense desejava. E eu só queria o velho. O que ficara esquecido naquele bairro portuário que fora tão mal habitado no século passado. Não me importava com o piso de madeira que rangia quando eu andava, ou com as marquises cheias de lodo e vergões enferrujados. Gostava de andar pelo bairro, sentar nas calçadas e olhar os prédios se decompondo. Gostava de sentar na beira do porto e ver o lixo da cidade escorrer para o mar. Tudo aquilo me fazia sentir-me em casa. Distante das pessoas ditas normais. Distante do fluxo normal do tempo e da cidade. Eu era feliz, imerso naquele clima de decrepitude, de solidão, de fim de mundo. Poucas coisas me definiam tão bem quanto o silêncio do Recife Velho de madrugada. Ninguém ia ali. Ninguém percebia, ninguém via as pessoas e fantasmas que viviam e perambulavam por ali. Era um pedaço morto da cidade. O pedaço da cidade que eu mais amava. Aquilo era o que eu chamava de casa.

Logo, ganhei a rua de paralelepípedos lisos e segui os caminhos e pontes entre pessoas e carros. Cruzei o asfalto sobre o rio, a lama e o mangue. E quando o sol chegava a seu ápice no céu, arrancando de mim toda minha ressaca em forma de suor, alcancei o Pátio de São Pedro. Sentei-me num bar, à beira de uma igreja corroída pelo tempo. Pedi uma cerveja e um almoço comercial ao garçom que já me conhecia. Logo que me trouxe a bebida, tomei um gole e recostei na cadeira de plástico.

“Apenas me deixe pegar sua mão e escrever meu endereço e telefone nela.”

Me veio a lembrança...

“Me deixe apenas, te pegar pela cintura e te levantar até a altura dos meus olhos. Me deixe apenas te fazer promessas e planos... para o inferno com o meu passado e com o seu. Eu não me importo...”

Me vieram à memória as palavras de uma carta que eu escrevera e nunca enviara. Uma carta que nunca quis que fosse carta. Palavras que eu quis dizer e terminei engolindo... só para vomitá-las depois em um papel.

O que aquela mulher fizera em minha vida...? Tão poucas eram as coisas que faziam sentido a seu respeito. Tão imprevisível era o seu comportamento que nunca sabia o que lhe dizer. Ou o que poderia esperar de sua pessoa.

Aquela mulher só me trouxe dúvidas, e uma sensação quase permanente de incompletude. Eu tinha a impressão de que havia algo de errado na forma que as coisas aconteciam entre nós. Havia algo estranho nas suas idas e vindas. Algo que eu não podia compreender sobre ela...

Fiquei ali, imerso naquele devaneio e entre outros pensamentos até a terceira cerveja. Paguei a conta, e satisfeito, fiz o caminho de volta sem pressa.

Abri a porta de casa e me joguei na cama, esperando um sono sem sobressaltos. Tudo continuava fora de lugar no meu mundo claustrofóbico de poucos metros quadrados.

Dancei comigo mesmo uma valsa sob meus lençóis.

Embriaguei-me de solidão e adormeci.

3

“Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem

que é pra te dar coragem, pra seguir viagem,

quando a noite vem...”

Ela cantarolava enquanto passava os dedos em meu peito.

Embriagado de seu perfume, eu dormitava em seu colo numa doce ‘maresia’ pós-amor. Sentia o deslizar de suas unhas pela minha pele, causando-me arrepio atrás de arrepio, seguindo o ritmo de nossas respirações ofegantes.

Ela parou para acender mais um cigarro. Seu vício sempre à mão. Eu desistira de contar quantos ela fumava a cada encontro nosso. Eu desistira de muitas coisas quando se tratava daquela mulher. Não esperava que ela fizesse sentido. Deixava que ela entrasse e saísse de minha vida a seu bel prazer. Entreguei-lhe até a chave de minha casa. Enfim, a moça recostou minha cabeça num travesseiro e serpenteou silenciosamente até a radiola. Acabara o disco que ela tanto gostava.

Bebericou um pouco do vinho que trouxera e substituiu o vinil.

Apanhou o vestido que largara no chão e sentou-se na janela com as pernas displicentemente entreabertas. Sorriu quando percebeu que eu a observava.

Não disse nada, só saboreou a mistura do vinho e cigarro em sua boca e a brisa que lhe tocava as costas nuas. Fui até ela. Segurei com força em sua cintura e enterrei meu rosto entre seus seios. Beijei-lhe a pele quente e ela entranhou os dedos em meus cabelos. Tomei-a nos braços e deitamo-nos no chão.

Beijei-lhe até perder a noção da passagem do tempo, e tendo apenas mosquitos por testemunha, me lancei de novo no abismo que era o amor daquela mulher. Sem diálogo, sem palavras, sem certezas ou expectativas... Sem paraquedas.

Era o chão que me esperava, com certeza...

Mas quem se importa?...

4

Eram dez da manhã quando o editor ligou...

Não atendi.

A faxineira tocou a campainha cinco minutos depois. Abri a porta e lhe deixei entrar. Era uma senhora perto dos seus 60 anos que sempre tivera muita paciência comigo e com minha desorganização. Deixei a casa em seus cuidados e saí à rua. Segui a pé até um supermercado. Comprei as coisas que consegui lembrar que me faziam falta, entre elas uma garrafa de uísque, já que havia esgotado a última escrevendo as trinta páginas mais recentes do meu Romance. Percebi, entre as prateleiras, um colega do tempo da faculdade de biologia. Como não tinha o mínimo interesse de iniciar um diálogo naquele momento, desviei-me da sua vista e me dirigi o mais rápido que pude ao caixa. Não havia fila e comecei a passar minhas compras.

Ainda dei uma olhada indiscreta nos seios da morena que me atendia e lhe entreguei meu cartão do banco. A jovem me sorriu e antes que me perguntasse eu lhe disse.

-Passe no Débito.

Recolhi minhas coisas e tomei o caminho de volta para casa. Joguei tudo na geladeira de forma desorganizada e botei as pernas para cima numa cadeira de praia na varanda. Minhas vizinhas de baixo tinham costume de fumar maconha antes do almoço e eu não me incomodava com o cheiro. Já tinha até me acostumado a sentar ali e ouvi-las dando risadas e conversando sobre suas vidas sexuais com os respectivos parceiros. Morava naquele sobrado há quase seis meses e ainda não sabia os seus nomes. Fiquei naquela posição pelo resto da manhã. A faxineira me acordou do meu cochilo para me dizer que ia embora e que duas moças pediam para falar comigo. Paguei-lhe a diária e fui até a porta para ver quem eram as visitas. Senti o cheiro de erva quando me aproximei da entrada. Eram as duas jovens que moravam embaixo. Se apresentaram como Clara e Gabriela e perguntaram-me se eu tinha gelo. Fui até a geladeira de má vontade e verifiquei que o congelador estava repleto de ‘neve’ e havia apenas uma vasilha cheia.

Abri uma lata de cerveja e levei o vasilhame até as duas.

A que parecia mais jovem, Gabriela, tomou o pote de gelo nas mãos e Clara me agradeceu com um beijo no rosto.

Fiquei sem reação enquanto observava as duas descerem as escadas aos risos. Voltei para a varanda e liguei para o meu editor.

Disse-lhe que entregaria mais três capítulos até o fim da noite, o que era uma solene mentira. Pelo menos até o momento. Sentei-me e terminei de beber a cerveja enquanto pensava no traseiro da garota que havia me beijado.

5

Alguém batia insistentemente em minha porta.

Eram nove da noite de uma terça feira de outubro, eu me recordo.

A pessoa batia e chamava por meu nome. Se eu não estivesse tão embriagado quanto estava, talvez tivesse reconhecido a voz de Tiago, o editor do periódico online que havia me contratado sete meses antes para lhe entregar um Romance. Tinha acordado com ele a entrega de um capítulo por semana, para que ele pudesse publicar como faziam os jornais de antigamente. Eu só tinha aceitado a proposta pela minha falta de dinheiro. Sabia desde o princípio que seria uma tarefa difícil. Era raro que minhas inspirações durassem mais do que uma página e eu tinha uma péssima relação com prazos de entrega. Sabia disso pelos meus 10 anos de academia. Por toda graduação, mestrado e doutorado, eu raramente eu cumpri meus prazos, e quando o fazia, era depois de muito tempo de procrastinação.

Por não ter reconhecido a voz, cambaleei até entrada e abri a porta. O editor pareceu aliviado ao ver que eu estava vivo, mesmo no estado de embriaguez que me encontrava. Deixei que ele entrasse, apesar da garota nua dormindo deitada no sofá. Sentei-me em uma cadeira e indiquei-lhe outra.

Ele se manteve em pé.

- Você sumiu cara. Faz uma semana que espero os capítulos que você me prometeu. Pensei-te morto, afogado no próprio vômito! Disse-me furioso.

Tive vontade de mandá-lo ao inferno. No entanto, ofereci-lhe uma cerveja.

Percebi que Tiago estava à beira de chutar-me, ou pior... De me demitir.

Por fim, sentou-se e disse.

- É difícil trabalhar com você. Sua sorte é que gostam do que você escreve. Porque você não larga essa bebida e vai escrever?

Deixei-o falando sozinho e fui ao quarto. Regressei com um maço de papéis e joguei em cima da mesa.

- Aí deve ter mais do que você precisa para me deixar em paz por mais um mês, não? Deixe o cheque antes de sair, por favor.

Fui ao banheiro e lavei meus olhos avermelhados, talvez pelas duas noites de insônia, ou pelo bolo que Clara havia me feito comer sem saber o ingrediente especial que ela adicionava em sua receita.

Tiago deixou a casa com meus rascunhos e largou um cheque em cima da mesa.

Eu teria um mês de tranquilidade, sem ninguém me ligando insistentemente ou batendo a minha porta para saber se eu estava vivo.

Quem ele pensa que sou? Bukowski? Murmurei irritado para minha imagem no espelho.

Fechei a porta atrás de mim e sentei-me no braço do sofá onde garota dormia. Passei a mão em seu cabelo, que apesar de ser naturalmente liso, ela mantinha sempre entranhados em longos dreads.

Clara tinha vinte e um anos, ou pelo menos era a idade que ela dizia que tinha. Era uma artista plástica amadora, apesar de ser muito boa. Morava no apartamento abaixo do meu com sua prima Gabriela. Certa vez veio à minha porta e perguntou se podia me desenhar. Eu ri do pedido, a princípio. Mas pude perceber a seriedade em seu rosto e lhe perguntei o motivo do interesse em me retratar. Ela disse-me que eu tinha algo que procurava há muito tempo e só isso, o que achei satisfatório. Resolvi deixá-la fazer o retrato e foi assim que entre duas ou três visitas e algumas garrafas de vinho e conhaque ela terminou em minha cama.

Clara tinha namorado, mas eu não me importava. Contanto que ele não batesse em minha porta com um revolver, eu estava suficientemente satisfeito para manter aquela situação. O cara era um idiota. A própria Clara reconhecia, mas gostava de mantê-lo por perto. Ele sempre tinha erva consigo e a levava a lugares que ela apreciava. Ele era muito jovem, ela dizia. E para certas coisas ela preferia contar com homens da minha idade.

Eu gostava da garota. Ela falava menos do que era comum para mulheres de vinte e poucos anos. E com certeza falava menos besteira. Eu deixava que ela lesse meus manuscritos e apreciava seus comentários. De vez em quando me trazia comida e não reclamava de minha bagunça. Às vezes vinha ao meu quarto apenas para me observar escrevendo e desenhar.

Nesta noite, Clara veio com uma disposição para sexo que poucas vezes eu tinha visto. E só apenas depois de quatro intercursos que se deixou cair no sofá e adormeceu. Eu sabia que provavelmente devia ter brigado com o namorado. As constantes brigas com o rapaz lhe atiçavam o libido e desde que tornei-me seu amante, era a mim que ela recorria nessas horas.

Eu estava exausto e de certa forma, frustrado. A visita da garota havia me interrompido enquanto escrevia. Não conseguia retomar o pé da coisa e abandonei o computador de lado. A vinda do editor também não havia ajudado. Andei de um lado para o outro do quarto. Tomei um cigarro da bolsa de Clara e pensei em acendê-lo. Meus seis meses de abstinência teriam ido para o espaço naquele momento se eu tivesse algum fósforo em casa. Por sorte, havia esquecido de comprá-los.

Larguei o cigarro no chão e fui dormir.

6

O sangue escorria vermelho vivo, da ferida para a lâmina da navalha. Naquela tarde de domingo, fazia minha barba, meio atarantado, meio perdido. Olhava no espelho e não reconhecia o homem do outro lado. O toque do telefone me distraiu e assim, errei o corte. Segurei um pouco a ansiedade e não atendi. Estanquei o ferimento com um algodão e terminei o serviço sem pressa. Voltei ao meu quarto e joguei-me na cama. Minutos depois, o telefone tocava de novo. Apesar do revirar do estômago, da sensação de urgência e de toda a agonia que me acometeu, deixei o aparelho tocar indefinidamente.

Sabia quem era e não queria ouvir sua voz. Aquela mulher, que agora me ligava com certa insistência, era também capaz de desaparecer e passar meses sem me dar a mínima atenção. Imprevisível, egoísta e adoravelmente cínica. Eu sabia que atendendo a ligação, correria o risco de ceder ao seu encanto. Ela tinha a capacidade de soar sincera até quando proferia a mais solene das mentiras. Era para mim um mistério, e naquele momento eu estava cansado de mistérios. Queria um pouco de paz para seguir adiante com minha vida. Eu sabia que ao ouvi-la, minha resolução de não vê-la se desmancharia e eu terminaria em seus braços. Tanto me custara deixar de pensar nela depois do último sumiço. Não estava disposto a voltar àquele círculo vicioso. Não queria voltar àquela rotina doentia.

Levantei-me irritado. Peguei as chaves de casa e desci as escadas.

Encontrei Clara e seu namorado na frente do prédio. Ela me sorriu e se aproximou para me dar um abraço.

- Tudo bem, poeta da ressaca? Falou-me ao pé do ouvido, depois de me dar um beijo no pescoço.

Seu namorado parecia tão chapado que nem sequer percebeu o gesto indiscreto de Clara.

- Tão bem quanto eu poderia estar. Estou saindo para uma caminhada.

Disse-lhe tentando me afastar e seguir meu caminho.

Clara, no entanto, me reteve segurando em meu braço.

- Porque não vem conosco? É aniversario de Gabi. Vamos comemorar na casa de praia do namorado dela. Ela pediu que lhe convidasse.

A princípio não achei uma boa ideia viajar com minha amante e seu namorado. Mas... ‘Foda-se’, pensei. Não tinha nada melhor para fazer.

Subi as escadas, peguei uma garrafa de vodka, um casaco e fui ao encontro dos dois no carro em que me esperavam. Passei a maior parte da viagem calado, apesar das frequentes tentativas de Clara para me fazer falar.

Ao fim ela conformou-se. Quando chegamos à casa de praia onde seria dada a festa, o idiota deixou-a no carro comigo e se meteu no meio do povo, visivelmente ansioso. Assim que ele saiu da vista, puxei a garota para o banco de trás e lhe beijei ali mesmo. Certos riscos eu gostava de correr.

Não ficamos no carro por muito tempo e logo entramos na casa. Cumprimentei Gabriela e outras pessoas presentes na festa. Clara não saía do meu lado. Estava com um vestido verde longo, estilo hippie, com uma estampa de temática indiana que me agradava bastante.

Depois de algumas horas, todos os presentes estavam entorpecidos. De álcool e de juventude. Eu sentava no chão, agarrado com o que sobrava de minha vodka. Clara estava deitada aos meus pés, conversando alegremente com duas holandesas estudantes de intercâmbio, já bem integradas ao estilo de vida do nordeste do Brasil. Levantei-me para ir ao banheiro carregando a garrafa comigo. Esbarrei em um rapaz que parecia não saber onde estar e quase me deixei cair na porta do banheiro. Quando me recompus, dei de cara com o namorado de Clara. Empurrou-me e chamou-me de idiota. Não esperava aquilo dele. Parecia sempre tão chapado que eu o achava incapaz de alguma violência.

Fingi que não fora comigo... mas então ele segurou meu braço e disse que sabia de Clara. Pedi-lhe que me soltasse e ele largou-me e me cuspiu no rosto. Aquilo foi a gota d’água para mim.

Acertei-lhe a cara com a garrafa. O vidro não se espatifara, mas abriu-lhe um corte na têmpora. O rapaz então soltou um gemido e caiu com um baque surdo. Entrei no banheiro, urinei, lavei o rosto e voltei para onde estava. Socorreram-no logo depois. Parecia estar bem, e apesar da força do golpe, logo estava aos flertes com uma das intercambistas, que lhe estancava o sangue da ferida.

Escapando da atenção de Clara e dos outros presentes me sentei à beira do mar com os pés ao alcance da água e a garrafa enterrada ao meu lado. Meu estômago girava, mas bebi um último gole e deixei a bebida de lado.

Por fim, sentia-me arrependido por não ter atendido o telefone.

O que será que ela queria comigo?

Me perguntei, enterrando a cabeça ainda mais na areia.

7

Voltei para casa sozinho, sem dar satisfações. Peguei o primeiro ônibus e rumei de volta ao Recife. Clara me ligou três vezes durante a viagem. Não lhe atendi. Na quarta vez, desliguei o celular. Desci próximo de casa. Caminhei até o porto e me deixei ficar lá sentado até que escurecesse completamente. Tomei o caminho de volta. Subi as escadas e sentei-me na varanda. Cochilei e acordei depois da meia noite. Não pude voltar a dormir por mais que tentasse. Abri uma segunda garrafa de vodka e voltei a beber. Sentei-me à escrivaninha e deixei alguns pensamentos fluírem para o papel.

Tomo mais um gole, em memória dela.

Vodka e gelo, para uma segunda feira insone.

Ela dorme agora, com certeza, em qualquer lugar que seja.

Não faço ideia com o que sonha.

Se é que sonha, afinal.

Desligo o rádio, para tentar dormir.

Resta apenas o barulho do ventilador,

e de um ou outro mosquito ao redor dos meus ouvidos.

Me pergunto por que estou pensando nela.

Não sei o motivo desse pensamento recorrente,

que chega a incomodar.

Aquele olhar que eu sequer me lembrava que tinha me olhado,

hoje me assombra... De uma forma quase agradável.

Não é a primeira vez, nem vai ser a última,

que eu me encanto por poucos detalhes e ignoro todo o resto.

Talvez Ela não seja para mim.

Talvez eu não precise de algo assim agora...

Mas eu não seria eu, se desse ouvidos à razão.

1:40 da manhã e eu permaneço acordado.

E nada nesta noite faz sentido.

A não ser o relógio, que continua me dizendo que eu devia estar dormindo.

Entre nós dois nada nunca fez sentido...

Por fim, amassei o papel e joguei numa lata de lixo.

8

Já era novembro, meio de semana e eu estava de ressaca. Fazia um calor infernal e eu queria poder pagar por um condicionador de ar. Deitei-me no sofá com um ventilador ligado no máximo apontado para a minha cara.

Eu não escrevia há mais de quinze dias. Não conseguia articular nenhuma frase sequer. Discutira com Clara e ela não me visitava mais depois do ocorrido. A princípio, não senti falta. Pensei em mudar-me, depois. Mas em um segundo pensamento, desisti. Teria trabalho demais.

Sentia-me desanimado para sair de casa, ao mesmo tempo em que já me cansava daquele ambiente. Me sentia preso. Preso em um livro ruim. Em uma narrativa que não levaria a lugar nenhum. Parecia que Deus era um péssimo escritor e eu era um mero coadjuvante. Eu esperava que uma hora ele se desfizesse de mim ou que engendrasse algum capítulo mais animador de minha existência.

Naquele momento de minha vida eu não tinha grandes ambições.

Queria apenas inspiração suficiente para terminar o maldito texto que tinha me comprometido a entregar. Queria sentar-me uma noite e escrever até a exaustão.

Comecei a adquirir hábitos estranhos. Trocava o dia pela noite. Alimentava-me mal e bebia praticamente todos os dias. Me via caminhando pelas sombras da Ponte Buarque de Macedo em busca de inspiração, e repetindo os caminhos de Augusto dos Anjos pela minha cidade. Passei uma semana sem dormir mais do que duas horas por dia. Pensei em suicídio, certa vez. Pensei-me um idiota, logo em seguida.

Por tanto tempo eu havia esperado por uma ligação, ou pelo barulho daqueles passos escada acima, tão característicos. Sentia falta daquele perfume invulgar. Do cheiro de cigarro que invadia a casa tão logo ela se instalava. Do seu jeito tão diferente de qualquer outra mulher que eu já tinha tido.

A princípio sua imprevisibilidade me entesava, mas toda aquela incerteza tirava-me o sono. E com o tempo, a incerteza foi se tornando uma certeza.

Ela não vai voltar. Ela não vai voltar.

Eu repetia e escrevia nas paredes.

Encarava seu retrato sobre a escrivaninha e a marca de batom que deixara no espelho. Me perguntava o que tinha lhe afastado. Beijava e cuspia em sua foto. Amaldiçoava e me lamentava.

Foi aí que começou meu hábito de subir em marquises e prédios abandonados, ao fim das tardes, para ver o pôr do sol. Eu subia para me embriagar sozinho e ver o horizonte alaranjado, nuvens cor-de-rosa, e a cidade ao fundo, como um barulhento prêmio de consolação pela minha perda.

Me arrastava para casa de noite, sem querer voltar para aquele templo de lembranças que era o meu quarto. Voltava só para me relembrar daquela mulher e de seu inglório disfarce de paixão, suor e sexo... E relembrava aquilo tudo, vendo a taça que ela esquecera ao lado da minha cama e eu nunca tivera coragem de mudar de lugar. Lembrava-me do rosto dela. Das palavras que me dizia, de sua boca seca e dos lábios rachados, displicentemente pintados de vermelho...

Certo dia me levantei de repente da cama onde eu vegetava, arranquei a taça da escrivaninha e lancei pela varanda com uma fúria que não me era comum. Me desfiz de tudo o que era dela. Das fotos e até do vestido que deixara no meu armário.

Apaguei a marca de batom no espelho do banheiro e por fim, nauseado, vomitei no vaso sanitário. Lavei o rosto, escovei os dentes, fui então ao computador e escrevi até alta madrugada. Digitei a última palavra do texto e finalmente desejei que aquela mulher de fato não voltasse.

Em um único evento, pus um ponto final nos dois romances.

Enviei o resultado para o e-mail do editor e voltei para a cama.

Dormi, enfim, por um dia inteiro.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 12/01/2015
Reeditado em 27/02/2015
Código do texto: T5098817
Classificação de conteúdo: seguro
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