A MENINA QUE NUNCA TINHA VISTO O MAR

Morava com seus pais num bar, destes que, alem dos clientes beberem bastante, também o faziam os proprietários. De manhã cedo até a tardinha ajudava nos afazeres. Após o almoço lhe sobrava um tempo livre. Pra escola não ia. "Bobagem" dizia o pai e, calada, consentia a mãe. Contava onze anos e muitos trocados durante o dia, dos não via sequer a cor. Era habilidosa em contar dinheiro e dar trocos, as pessoas não sabiam como e , vez ou outra, algum vagabundo tentava lograr-lhe uns trocados, ao que ela sutilmente contornava a situação sem que seu pai visse, pois do contrário, corria o vagabundo a bofetões.

Era triste não ir para escola, ter sua infância suprimida, vivendo uma vida assim, já adultecida desde pequena; mas seu maior motivo de tristeza não era este. Lamentava profundamente não poder ver o mar, sobre o qual as pessoas falavam tanto. Devia ser lindo e passar uma sensação de grandeza. Deveria ser maior que barulho de trovão e mais bonito do que qualquer cheirou que se possa sentir na vida.

Um dia iria ver o mar dizia pra todos. Uns se compadeciam, pois sabiam que ela nunca veria. Alguns, inclusive, diziam que ela não perdia grande coisa. Ele não era tão bonito assim. Mas havia os que também achavam graça. Seus pais se aborreciam. Eram, de fato, pessoas muito aborrecidas. Tão aborrecidas que não vale comentar mais sobre eles.

Um dia, já tarde da noite, o pai da menina, já embriagado, dormiu com um cigarro acesso e tacou-lhe fogo no bar. A mãe estava na cozinha e talvez se estivesse mais sóbria teria conseguido escapar, mas não era o caso nessa noite, aliás, em nenhuma noite. A menina que tirava o lixo pra fora, ouviu a mãe gritando pra ela correr pra longe da casa. Se entender o por que ela fugiu. Na areia da pra deitou, gritou e chorou como jamais havia feito.

Perto dali, uma velha, um velho, um homem e também um peixe, navegavam. A velha que estava no controle da embarcação enquanto os outros descansavam, viu as chamas já altas e acordou os outros. Em pouco tempo já estavam na praia.

Foi o homem, que outrora havia sido uma ilha e que, aos poucos se recuperava desta forma de ser, que avistou a menina que gritava pelo pai e pela mãe. Foi ter com ela enquanto os outros seguiram para o bar que queimava alto. Chamou a atenção da garota e por algum motivo, ele que não olhava nos olhos de ninguém, se viu, por um tempo indeterminado, olhando o não-olhar da menina e percebeu que ela também, como ele, não olhava nos olhos de ninguém. Aliás, não olhava nada, nem os olhos, nem a areia, nem o mar. Tomado por uma afeição e um pressentimento ruim, pegou a menina nos braços, enquanto os outros voltavam cansados e desanimados por não terem conseguido apagar as chamas nem socorrer ninguém daquele pequeno inferno.

Ao longe, sirenes já começavam a soar. Os amigos se olharam durante um tempo, inclusive o homem que outrora tinha sido uma ilha - causando um misto de espanto e felicidade nos amigos - e , como já se conheciam muitos bem, pois a vida no mar integra as pessoas de tal forma que em muitas vezes palavras são desnecessárias para se entenderem, numa verdadeira democracia decidiram que a menina agora era parte da família.

Seguiram para o local onde estava o barco, tendo que, para isso, nadar um pouco. O homem carregou a menina e quando ela sentiu a água gelada banhando seu corpo perguntou:

- Isso é o mar?

- Sim, é o mar - respondeu o homem.

- É lindo - disse a garota.

E ele teria dado um largo sorriso se não tivesse ocupado num esforço danado pra levar a menina ao barco.

A perícia confirmou que só haviam dois corpos adultos no bar. Sobre a menina, as opiniões se dividiram em várias especulações, desde hipóteses baseadas em abduções alienígenas até a possibilidade dela ter corrido para o mar, sem ter visto o mar e ter sido engolida por ele. Mas os poucos que até agora tiveram o privilégio de conhecer essa pequena narrativa sabem que, enfim, ela viu o mar.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 04/02/2015
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