Segredos De Pais Para Filhos

Diante aos instrumentos amadeirados, vendidos naquelas lojas compactas na grande cidade de São Paulo. Fiquei paralisado, com a boca seca, mãos trêmulas, tentando pensar em como roubá-los pra mim. Não queria comprar, teria que consegui-los. Seria para uma causa nobre; proteger meus filhos tortos.

Proteger do que? Das inúmeras faltas de opções criativas, de angustias infantis que, duram toda uma vida, da fome cultural, do balanço das marés, do desafio de escolher seguir a si mesmo, evitando clichês enraizados em nosso cotidiano imundo. Eu tinha que proteger tudo aquilo que era meu, pois nunca fui engenhoso o bastante para semear boas ações e solidificar relacionamentos fraternos. Eu, objeto de estudo desta obra, só tinha a mim mesmo. Nos verões do Brasil, costumava viajar para as montanhas, para ficar ainda mais isolado do contato social e, mesmo que de forma amadora, escrever poesias sem valor para ler em voz alta para o gravador velho da minha vó e escutar antes de dormir, fingindo ser alguém que tanto quis. Nas manhãs, preparava um banquete, arrumava todos os lugares à mesa e me ajeitava de forma singela, porém digna para a refeição sagrada.

Enquanto comia torradas cheias de geleia de morango, costumava pincelar memórias de um passado hostil, repleto de fluxos sem sentido, vozes radiofonizadas e muito sexo barato. Após me empanturrar, cantarolava versos de músicas irritantes dos comerciais de TV, enquanto limpava a louça e pensava em alimentar os pardais que voavam em cima daquela casa de montanha. Era assim todos os dias, o mesmo ritual, os mesmos pensamentos, as mesmas lágrimas e o mesmo toque sensível na cama vazia. Havia um senhor, de mais ou menos 44 anos, bem vestido, alto, com olhos verdes, que morava em um chalé em frente ao meu. Quase sempre ele acenava me cumprimentando, e eu respondia com um sorriso de lado e um levantar de sobrancelhas tímidas. Passava a tarde inteira imaginando tudo sobre aquele homem: o que comia, com quem dormia, o que ouvia, gostava de filosofia? Sabia o que era filosofia? Aquilo tudo me dava tanta ansiedade, não era difícil me ver andando em círculos na cozinha, roendo unhas e com pensamentos pulsantes com ideias de como ir até a casa do homem. “E se ele me recebesse mal?” “pedir um pouco de açúcar?”, “que desculpinha fajuta” e aquilo tudo não parava de fluir. Acho que fiquei durante uma semana criando histórias sobre quem seria aquele homem, acho que cheguei a amá-lo e desejá-lo profundamente em algumas horas do meu dia. Talvez, fosse a solidão, talvez, fosse a forma mais pura de amor, O ideal de Platão. O homem perfeito, o cenário perfeito, havia até melodia naquela atmosfera nebulosa. Depois dessa observação, passei a observá-lo todos os dias pela janela, passei a sorrir com a boca inteira e soltar a voz para dizer um oi, meu coração quase saía pela boca, mas ele nem imaginava todo o meu amor de poeta louco. Foi nesse período que fiz minhas mais belas poesias, meus maiores sacrifícios e meu mais belo ato corajoso: Bati em sua porta.

-Olá, posso ajudar?

- Oi, estou passando um tempo ali em frente, sozinho há um bom tempo, estou fazendo um jantar, gostaria de convidá-lo. Você e quem mais estiver aí.

-Não tem ninguém, estou sozinho também, obrigado pelo convite.

Saí sem dizer nada, finalmente havia olhado em seus olhos, sentido seu cheiro, mesmo que rapidamente, estava hipnotizado. Então, resolvi não procrastinar e ir logo preparar o jantar. O jantar estava pronto, as horas se passando e ninguém aparecia. Abri uma garrafa de Whisky e comecei a beber um pouco, as horas foram se passando e as doses também. Ele não veio. Joguei toda aquela comida fora, o amaldiçoei duzentas e vinte duas vezes e adormeci na varanda.

Quando despertei, vi uma movimentação estranha em volta da casa dele, sim, ele havia morrido, sozinho, momentos antes de vir para o jantar. Havia morrido sem ao menos eu saber o seu nome, se gostava de filosofia e sem desfrutar de todo meu amor. Peguei minhas malas e saí daquela casa, fui até o litoral, vi dezenas de amigos e não contei para ninguém sobre o ocorrido, afinal minhas coisas não são comuns aos olhos sociais.

O tempo passou. Quanto tempo? Não sei. De repente, a roda da fortuna sorriu pra mim. Ganhei de presente lindos filhos, mas, havia um revés. Eram todos retratos daquilo que eu viria ser se não tivesse morrido no meio do caminho. Exatamente três filhos: O ator, o músico e o médico veterinário. Ainda tão pequenos, com as bocas salivando por qualquer alimento colorido, acreditando em meus contos, amando o nada como se tivessem tudo, manipuláveis, necessitados, sofredores, inquietos, iguais ao pai. Grosso modo, eu os protegia, não sabia o que estava criando exatamente. Diziam que superproteção era algo ruim, porém, eu nunca havia tido proteção alguma, queria dar o que eu não tive, isso é coisa de pai, coisa de gente normal. Na paternidade caímos na banalidade, mais um clichê necessário para solidificar o mundo. Pela primeira vez me senti útil no universo, ensinar é algo intimidador e gratificante nos mais variados sentidos. Fazia meu ofício com muito esmero.

Eis que volto para os instrumentos amadeirados, os olho, seguro forte, alimento pensamentos criminosos, mas não faço. Os deixo, sigo meu caminho, com a terrível dor de não poder proteger os filhos do mundo, com eterna sensação de tudo escorrendo pelos vãos dos dedos.

Lucas Guilherme Pintto
Enviado por Lucas Guilherme Pintto em 10/02/2015
Código do texto: T5132011
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