Chiaroscuro

Nunca fui jovem. No auge dos trinta e poucos e muitos anos, olho para trás e me vejo envolto em uma nuvem densa de amargura, revoltas e constrangimentos. A roupa não combinava com o tênis nem com mochila e muito menos com a vida, que me caía mal.

Entre todos os deslizes, transes e iminente insanidade, deixei escapar e escoar pelos dedos quaisquer possibilidades de me relacionar com os próximos e tornar transponíveis os muros que ergui a minha volta e serviam de proteção ao mundo. Malditas horas planejadas para fugir do eu escondido e acabrunhado em um remoto canto de minh'alma. Era melhor ignorá-lo.

Caminhei, corri, andei e busquei momentos ideais para transcender o destino a mim ferozmente imposto e obtive insucesso. Renderam-me dores de cabeça e cargas ainda mais pesadas para transportar e ir em frente. Frente. Havia frente, caminho, sentido, seta? A vida carecia de indicações, que seriam a minha segurança. Permanecia inseguro e afoito por encontrar outros trechos a percorrer.

Altos e baixos. Ousei tentar desistir. Cortei traços, laços, vínculos. Sozinho. Furtivamente, apossei-me da tesoura de Átropos, que a roubou de mim em um ato de retaliação carregado de ódio pela audácia. Jurou-me anos a mais de expurgação. Calei-me. O que poderia contra ela?

Desembestado, enfrentei tempos, temporais, variações de marés e mares isolados. Em quietudes interrompidas pela tormenta interior, refleti sobre o que seria a vida. Antes, deveria saber o que era eu. Que espécie de bicho nascido para crescer, sofrer e morrer poderia, em algum momento, ser feliz? Sorrir, comemorar, amar e pôr no mundo outros bichos igualmente fadados ao inescapável fracasso final. Um ciclo eterno e imutável. Em ares longínquos, sorriem graciosamente anjos e santos, conscientes da desventura humana. "Tolos", sibilam à direita de Deus-Pai-Todo-Poderoso.

Continuo a rodar em círculos trancafiado nesta sala branca. Apenas a minha cama acompanha as angústias e percepções relatadas e lançadas ao vento, enquanto a porta se abre e uma bandeja é posicionada perto dela. Poucos se aproximam do meu corpo esparramado ao chão, temendo revanches nunca desejadas.

Aproximo-me vagarosamente da cuidadosa moça vestida de branco quase fundida com a parede, tamanho receio de meus sorrateiros passos. Deixa o alimento, a água e um pequeno copo de plástico vazio. Em um papel, as indicações para a ingestão das pílulas.

Engulo-as para suportar mais um dia.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 15/02/2015
Reeditado em 15/02/2015
Código do texto: T5137730
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