SOBRE OS VERSOS ÍNTIMOS - Segunda Estrofe

“Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora entre as feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.”

(Augusto dos Anjos, em Versos Íntimos)

Maria Aparecida já estava acostumada às humilhações que a consumiam. Desde criança, sentira-se discriminada por ser pobre, por ser negra e por ser mulher. Viera do interior à capital com o coração repleto de esperanças – acreditava que, na cidade grande, onde havia mais gente, mais diversidade étnica e social, não deveria existir tanto preconceito.

No primeiro emprego que arranjara, tivera a impressão de estar certa. A família a tratava com um mínimo de respeito. Conseguira até colocar os três filhos na creche – era mãe solteira. Mas seus patrões haviam se mudado, e Aparecida se vira desempregada de novo. Com três pequenas bocas para sustentar, além da sua própria, tivera de aceitar o primeiro emprego que encontrara, naquele apartamento de classe média alta, onde os patrões se achavam os donos do mundo – embora não tivessem a metade do dinheiro que seus antigos empregadores possuíam.

Trabalhava de sol a sol. Não tinha domingos nem feriados. Ninguém lhe perguntava se não gostaria de tirar um dia de folga para ficar com os filhos, levá-los ao médico – o pequeno tinha ataques de tosse que a faziam se desesperar, à noite –, brincar com eles, ou contar-lhes histórias. Chegava em casa exausta, após tomar dois ônibus e andar um quilômetro a pé morro acima. Já encontrava os pequenos escondidos embaixo das cobertas, agarrados uns aos outros, agasalhando-se mutuamente do frio e do medo – não era incomum uma bala perdida entrar nalgum barraco da favela. Há dois dias, um projétil sem destino ceifara a vida do filhinho mais novo da vizinha da frente, um menino de três anos...

Muito cedo, deixava a comida pronta, para que a filha mais velha a aquecesse na hora do almoço, e partia sem ter coragem de acordar os pequeninos. Saía para sua via crucis, que, ao contrário da original, que terminara morro acima, iniciava-se morro abaixo. Pegava os dois ônibus e chegava no trabalho, onde a patroa, mal-humorada, nem lhe dava bom dia. Já estava acostumada aos insultos dela. Logo que começara naquele emprego, fora proibida de usar a louça da família – haviam-lhe dado um prato velho, lascado, uma caneca de plástico manchada de café e um jogo de talheres cujo cabo do garfo havia caído, e fora colado com fita adesiva. Muitas vezes, quando achava que a louça ou a roupa não estavam lavadas a seu gosto, a patroa resmungava: “eu tinha que ter contratado essa negra, mesmo”. Aparecida fingia não ouvir. Precisava mais do emprego do que de sua dignidade.

O patrão, um médico, nunca estava em casa. Quando estava, olhava-a com tanto desprezo que ela se perguntava se, caso fosse lixo hospitalar, não estaria sendo mais bem tratada por ele. Mas o pior era o menino, o filho único do casal. Uma criança de oito anos, linda, muito loura, de olhos cor de safira, que, no entanto, era uma verdadeira praga. Quando menos Aparecida esperava, o menino atirava-lhe objetos, dava-lhe chutes nas canelas. Uma vez, cortara-lhe a mão com uma tesoura, “para ver se o sangue dela era da mesma cor do sangue dos brancos” – e nem a constatação de que sim parecera-lhe diminuir o preconceito. Aparecida não tivera sequer autorização para ir ao pronto-socorro – haviam-lhe mandado atar a mão com um esparadrapo e continuar esfregando a roupa no tanque, já que as peças eram “delicadas demais” para a máquina de lavar...

Naquela tarde, Aparecida estava só com o menino. Ele permanecia entretido com o videogame – pelo menos isso o fazia deixá-la em paz. Terminou seu serviço e olhou para o pote de bombons que havia em cima da geladeira.

Quanto seus pequeninos não gostariam de um bombom! E, no entanto, aquela família de sentimentos tão mesquinhos jamais lhe oferecera sequer um doce para levar aos filhos...

Aproximou-se da geladeira, devagar, olhando em volta. O pote estava repleto. Não iam notar se faltasse três – um para cada uma de suas crianças. Pegou o pote e o abriu. Agarrou um bombom e o enfiou no bolso. Olhou em volta, assustada. Teve a impressão de ouvir um barulho. Recolocou o pote no lugar e ficou imóvel, por alguns instantes. Como nada aconteceu, pegou novamente o pote e retirou mais dois bombons.

No exato instante em que devolvia o pote a seu lugar, percebeu que dois olhos de safira cravavam-se em sua nuca. Nunca fora muito intuitiva, mas, daquela vez – provavelmente pela intensidade da raiva daquele olhar –, sentiu bem direitinho a presença daquele menino detestável, e virou-se para a porta da cozinha.

– Muito bonito, hem? disse a criança. – Vou contar para a minha mãe!

Aparecida estremeceu de medo e de raiva.

Súbito, um pesadelo se formou em sua mente. Demissão. Fome. Polícia. Os guardas subindo o morro para buscá-la. Os traficantes, sem saber do que se tratava, ao verem a polícia, começando um tiroteio. Uma bala perdida. Seus filhos... E, se nada lhes acontecesse, ficariam sem mãe, à mercê da sorte desgraçada que tanto persegue os pobres...

Cadeia. Degradação. Ela, que não roubara mais do que doces, tendo de conviver com a pior espécie de bandidos, talvez sofrendo sevícias de agentes penitenciários, talvez sendo obrigada a conviver com a voracidade sexual de desconhecidos...

Sentiu seu sangue aquecer e olhou em volta, desesperada.

Foi então que viu uma faca repousando sobre o balcão da pia.

Olhou para o menino com ódio. Talvez conseguisse matá-lo e sair dali antes que os patrões chegassem. Matar uma criança? Coisa horrível! Sentiu uma náusea.

Matar aquela peste? Aquele desgraçado? Aquela criança mimada que não passava de um protótipo de playboy sem coração, que provavelmente iria humilhar todos os pobres que pudesse quando adulto, ferir tantos desafortunados quantos lhe cruzassem o caminho?...

O menino talvez houvesse lhe adivinhado a intenção, pois paralisou-se por um momento, fazendo cara de medo. Aparecida recuou, devagar, levando a mão ao balcão, cada vez mais próxima da faca. Podia-se imaginar cortando a garganta do menino, rasgando aquela pele branca, fazendo esguichar aquele sangue que em nada era diferente do seu, do de seus filhos...

Seus filhos. Cadeia para ela, abandono para seus filhos. Mas ia ser assim de qualquer jeito, não ia? Então, que fosse com razão... Mas hesitava.

Nesse instante, ouviu um barulho na porta da frente. O menino voltou-se na direção da entrada do apartamento. Aparecida, instintivamente, agarrou a faca e escondeu-a na cintura, por trás, cobrindo-a com a blusa.

– Mamãe! gritou o pequeno. – A Aparecida estava roubando!...

A patroa entrou na cozinha e a encarou.

– O quê? Você estava mesmo roubando, Aparecida?

– Bem, eu... – Baixou os olhos. Sabia que não lhe adiantava mentir. – Eu só peguei uns bombons, dona... Estão aqui.

Tirou-os do bolso e os entregou na mão da dona da casa.

– Aparecida, você está...

– Eu sei – interrompeu ela. – Desculpe, patroa. Por favor, não chame a polícia...

– Cale a boca. Saia daqui imediatamente, sua negra porca e ladra.

– Sim, senhora.

Aparecida pegou sua bolsa e saiu, sentindo a humilhação queimar-lhe as entranhas. Por outro lado, apesar do ódio que sentia – e apesar de saber o quanto era justo o ódio que sentia –, dava graças a Deus por não se ter tornado uma assassina.

Quando, porém, foi subir no ônibus, sentiu a faca, que permanecia presa ao cós de sua saia.

Pensou em devolvê-la. Não teve coragem. Não valeria a pena. Afinal, não tivera a intenção de ficar com ela, mas apenas o instinto a fizera escondê-la sob a roupa. “Achado não é roubado”, pensou.

A faca era de prata. Talvez... Talvez conseguisse vendê-la e, ao menos, comprar uma passagem de volta para o interior, para si e para seus filhos...

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 05/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T514690