SOBRE OS VERSOS ÍNTIMOS - Terceira Estrofe

“Toma um fósforo! Acende o teu cigarro.

O beijo, amigo, é véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.”

(Augusto dos Anjos, em Versos Íntimos)

Era ela? Seria possível?...

Um dia, já fora Giuliano Gonzalez – embora em sua certidão de nascimento constasse Juliano Gonçalves da Silva. Adotara aquele pseudônimo quando começara a pintar seus quadros. Agora, porém, era conhecido apenas como Juju, ou Juju Tosse, por seus companheiros de infortúnio.

Olhando contra o sol, da calçada em que se encontrava, meio escondido por jornais, Juliano não tinha certeza. Seria ela? Seria aquele raio de luz que, de vez em quando, invadia o baú de suas lembranças?...

Lembrou-se da tarde em que a conhecera. Estava em sua exposição – vernissage, gostava de dizer –, quando entrara aquela moça loura, usando um vestido diáfano que lhe revelava as formas de modelo. Juliano sorrira para ela. Ela se aproximara e começara a comentar sobre a genialidade do artista – depois, Juliano ficara sabendo que ela o reconhecera de imediato, por já o ter visto em fotos de jornais. Mas, na hora, ele acreditara que ela pensava falar com outro apreciador, e incentivara-a a comentar os quadros sem dizer que eram de sua própria autoria. A moça demonstrara algum conhecimento sobre arte – não faltara, depois, quem lhe dissesse que era coisa de interesseira que havia pesquisado um pouquinho na internet horas antes de chegar na exposição. Depois, ambos haviam conversado sobre outras coisas, ela sempre concordando com ele. Finalmente, ele se havia dado a conhecer como Giuliano Gonzalez, o expositor – e a moça redobrara os elogios à sua arte.

Juliano a convidara para sair. Haviam jantado num caro e bem freqüentado restaurante. Depois, haviam ido a uma danceteria, e, por fim, ao motel. Juliano ainda se lembrava com prazer daqueles momentos que haviam-lhe parecido tão sublimes. Ela dissera que eram dois corpos, duas mentes, duas almas que estavam se completando. Ele rira da “ingenuidade” dela.

Depois, ela havia conhecido um outro artista que costumava expor na mesma galeria, um artista mais velho, mais rico e mais famoso. Fora então que Juliano começara a beber. No início, não muito – na verdade, não se apaixonara tanto assim, bastavam algumas doses para afogar suas pequenas mágoas. Ao menos, era o que pensava. Logo, estava bebendo mais, e mais, e mais. Voltara a fumar – vício que abandonara havia cinco anos. Mas o álcool anda de mãos dadas com o cigarro.

O outro artista saíra do país, e, ao que Juliano soubera, a moça fora com ele para o exterior. Juliano tivera outras namoradas e parara de beber. Mas não conseguira nunca mais abandonar o vício do cigarro. Uma carteira por dia. Uma e meia. Duas. Pigarro. Falta de ar. Aquela dorzinha no peito cada vez que o tempo virava. Uma namorada o pressionara para que largasse o tabaco. A pressão só conseguira fazê-lo fumar ainda mais – primeiro, escondido dela; depois, até na frente dela. Quando a moça dissera “o cigarro ou eu”, Juliano ficara com o cigarro.

E a solidão o empurrara de volta para o copo...

Ao cabo de algum tempo, Juliano já não conseguia mais se manter sóbrio tempo suficiente para pintar. Começou a pintar bêbado. Achava que, com o álcool, sua genialidade transpareceria ainda mais em sua arte. Ledo engano. O álcool embotava-lhe a razão e suas obras começaram a perder a força expressiva de antes. Não pintava mais senão com os sentimentos – e até estes começaram a ficar obscurecidos.

Foi quando a tosse intensa começou. Fazia-o acordar de madrugada. Foi ao médico.

O médico deu-lhe um ultimato: ou os vícios, ou a vida. Lembrou-se da namorada que desdenhara pelo cigarro, e, embora lutasse contra o álcool e contra o fumo, acabou optando novamente por eles...

Num determinado dia, chegou bêbado em sua exposição. Aquilo foi a gota d’água para o gerente da galeria, que lhe deixou bem claro que não queria mais que ele expusesse ali os seus trabalhos.

Seu agente também perdera a paciência com ele. Juliano não conseguia mais comercializar seus quadros. Seu aspecto cada vez mais desleixado fez com que seus amigos, aos poucos, o abandonassem. Chegavam a atravessar a rua quando o viam. Isso só o fazia mergulhar ainda mais nos vícios, que, segundo ele, eram suas únicas companhias fiéis.

Foi despejado. Alugou um apartamento bem menor. Começou a pintar quadros para os passantes, na rua. A maior parte do dinheiro que tinha era gasto em cigarros e em bebidas. Estava cada vez mais magro. A barba negra cobria-lhe o rosto, suas roupas estavam sujas e foram-se tornando esfarrapadas. Por fim, não tinha mais dinheiro para comprar telas ou tintas, e nem para pagar o aluguel. Acabou despejado novamente, e, sem ter onde morar, foi viver nas ruas, pedindo esmolas...

Não tinha mais dinheiro para ir ao médico, e as longas filas do SUS lhe pareciam um purgatório cruel e totalmente inútil. Sabia que a vida o estava abandonando, como seus amigos de outrora haviam feito. O ar lhe parecia cada vez mais difícil de inalar. A tosse era cada vez mais constante. Os outros mendigos irritavam-se com aquilo, e quem já fora o famoso pintor Giuliano Gonzalez tornou-se, afinal, Juju Tosse, um mendigo com enfisema que definhava a olhos vistos. Um talento que morria – e o que mais o angustiava era justamente a consciência de seu potencial desperdiçado, justamente o fato de saber aonde poderia ter chegado, não fossem as desilusões amorosas, não fossem os vícios, não fosse a falta de solidariedade, não fosse a sorte, não fossem suas próprias falhas de caráter, sua fraqueza...

Era ela? Seria possível?...

Juliano levantou-se, com dificuldade, e caminhou na direção da mulher, agora de meia-idade, impecavelmente vestida. Claro que ela não o reconheceu. Mas Juliano teve certeza, apesar dos óculos escuros que lhe cobriam boa parte do rosto: era ela. Era a mulher que tivera em seus braços, que conhecera naquela tarde idílica e cujo corpo unira-se ao seu naquela noite inesquecível.

Chamou-a pelo nome. Ela se voltou, espantada, e o olhou com cara de nojo.

– Sou eu! disse ele. – Juliano! Giuliano Gonzalez!...

Apesar dos óculos escuros, pôde notar que ela franzia a testa, por um momento. Mas logo a mulher deu-lhe as costas e continuou seu caminho.

Juliano a chamou novamente. Ela fez que não ouviu e apertou o passo. Juliano foi atrás dela com dificuldade, o ar lhe faltando. Segurou a mão dela. Ela a retirou com asco.

– Por favor! Não acredito que você não se lembre daquela noite que passamos juntos!

– Nós? Eu e você? Você está louco! Nem sei quem você é!...

– Como não sabe? Você disse que meus quadros eram divinos, maravilhosos!...

– Seus quadros? Ora, seu bêbado, deixe-me em paz, ou eu chamo a polícia!

De repente, Juliano caiu em si. Estava mesmo bêbado – bêbado, esfarrapado e malcheiroso. E ela continuava linda, viçosa e perfumada.

– Desculpe-me – disse. – Desculpe-me... Eu acho que confundi você com alguém...

Ela o olhou com todo o desprezo deste mundo e fez menção de retirar-se, mas Juliano agarrou-lhe a mão de volta. Outra necessidade o premia. Sua embriaguez estava passando, não tinha cigarros, e os vícios o atormentavam como demônios famintos. Se ela conseguira manter seu padrão de vida, talvez não lhe negasse ao menos uma esmola...

– Você não teria um real para me dar? pediu, humildemente.

Ela retirou a mão e, ato contínuo, esbofeteou-o com força. Juliano não sentiu o golpe em sua pele, seu tato estava meio anestesiado. Mas sentiu todo o seu impacto na alma, e recuou, caindo de joelhos.

– Polícia! gritou a mulher. – Polícia, socorro!

Imediatamente, apareceu um guarda. (Impressionante como alguns deles – nem todos são assim – aparecem rápido quando a ameaça é inofensiva, e demoram a aparecer quando se trata de um assaltante realmente perigoso...)

– Pois não, senhora?

– Esse mendigo está me importunando.

Imediatamente, o guarda puxou o cacete e desferiu-lhe alguns golpes.

– Deixe a madame em paz, seu bêbado! grunhiu.

Juliano protegeu a cabeça com as mãos e teve um acesso de tosse. A mulher saiu rapidamente dali, com ares de dama ofendida. O guarda se cansou de bater em Juliano, vociferou algumas ameaças contra ele e deu-lhe as costas. Juliano permaneceu caído, junto ao meio-fio da calçada, na sarjeta.

Após longos instantes, conseguiu levantar-se e olhou para ela. Como pudera uma criatura daquelas ser o “início do fim” de sua vida?

Agora, ele a desprezava.

Arrastou-se de volta para onde estavam seus jornais e começou a procurar nos classificados.

Talvez ainda houvesse uma chance de viver – não muito tempo, mas algum tempo – com um mínimo de dignidade, nem que para isso o grande Giuliano Gonzalez tivesse de se tornar pintor de paredes...

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 05/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T514697