SOBRE OS VERSOS ÍNTIMOS - Quarta Estrofe

“E se a alguém causa pena inda tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

E escarra nessa boca que te beija.”

(Augusto dos Anjos, em Versos Íntimos)

O grupo aproximou-se devagar da casa humilde, sem reboco, de classe média baixa. Os cachorros, dois cruzados de pitbull com vira-latas, haviam sido previamente envenenados, no meio da tarde. Os quinze homens cercaram a residência e, a um sinal do líder, invadiram.

O morador os recebeu a tiros, mas todos sabiam desviar muito bem deles. Haviam-se acostumado a se esquivar das balas sem destino certo que, todos os dias, todas as noites, cortavam os ares da favela. Logo, o dono da casa ficou sem munição em seu revólver, e, antes que tivesse tempo de recarregá-lo, foi dominado pelos invasores. A mulher saiu da cama, seminua, e trancou-se num banheiro. Catorze dos bandidos agarraram o homem, enquanto o décimo quinto se aproximava, devagar, apontando-lhe um revólver.

O morador o olhou e teve um espasmo.

– Você?... murmurou.

Há alguns dias, a situação estivera completamente invertida...

Chamavam-se Pedro Antônio e Antônio Pedro. O fato de seus nomes serem um o reverso do outro parecia ter-lhes determinado o destino antagônico. Ambos haviam crescido na mesma favela, passado pelas mesmas necessidades. Haviam sido grandes amigos de infância. Mas, na adolescência, enquanto Pedro Antônio se dedicara aos estudos, Antônio Pedro se deixara influenciar pelas promessas de lucro fácil que o tráfico de drogas lhe oferecera. Pedro Antônio tornara-se policial militar. Antônio Pedro, após uma longa disputa que custara muitas vidas, havia-se tornado o líder de uma boca-de-fumo na comunidade.

Naquela tarde, após uma denúncia anônima – que, na verdade, a polícia sabia muito bem de quem partira, da gangue rival –, os militares haviam subido o morro e se espalhado pelas casas dos traficantes. Ninguém sabia dizer onde exatamente se encontrava o líder – Antônio Pedro não tinha residência fixa: seu lar era a favela inteira, e passava de barraco em barraco, de cama em cama, dormindo com todas as mulheres do lugar que assim o desejassem.

Havia sido justamente Pedro Antônio quem o localizara. Entrara sozinho no barraco onde ele estava. Apontara-lhe o revólver, dera-lhe voz de prisão e o algemara, ainda nu, praticamente tirando-o de cima da mulher em cujos braços estivera se deliciando até a chegada do policial. Mas o líder dos traficantes o reconhecera e apelara para as lembranças da amizade infantil.

– Pelo amor de Deus, Pedro! Eles vão me matar!...

– Ninguém vai te matar, Antônio. Sinto muito. Só estou cumprindo o meu dever.

– Você não entende! Estou jurado de morte há muito tempo. Se eu for para a cadeia, os meus inimigos têm gente infiltrada lá, e eu não vou durar um dia!

– Deixa de onda, Antônio. Dona, ajuda ele a pelo menos vestir as calças. É bandido, mas eu não quero que vá pelado para o camburão.

Antônio o encarara, com lágrimas nos olhos.

– Por favor, cara! Eu não tive escolha, foi a vida que me jogou nessa!

Pedro se exaltara.

– Qual é, Antônio? Caia na real! Eu também era pobre, e fiz outra opção, não fiz?...

– Você teve sorte de passar nesse concurso! Você teve uma mãe e um pai que sempre o estimularam a estudar! Já eu tinha que ir para a rua pedir esmola, e levava uma surra cada vez que chegava em casa sem dinheiro! E o pior é que aquele desgraçado do meu pai também batia na minha mãe, dizia que ela só tinha lhe dado filhos inúteis...

Pedro sentira um aperto no peito. O outro continuara:

– Você era meu amigo, você sabia de tudo o que eu passava. Você me conhece, você sabe que eu não sou ruim. Por favor, me dê mais uma chance! Eu juro que vou mudar! Mas se você me levar para a cadeia, eu não vou viver tempo suficiente para lhe mostrar que estou sendo sincero! Eles vão me matar de pancada, Pedro! Eles vão me bater até me arrebentar, vão me violentar antes... Pelo amor de Deus!...

Pedro olhara em volta. Não havia ninguém olhando. Tirara-lhe as algemas.

– Tudo bem – dissera –, mas ninguém pode saber disso.

Antônio vestira-se rapidamente e pulara a janela do barraco, perdendo-se rapidamente na escuridão, por entre as vielas.

Dois dias depois, outra denúncia anônima. Tão anônima, aliás, quando a primeira.

A polícia subira o morro novamente. Pedro Antônio até tentara não participar da investida, mas seu comandante não lhe dera escolha. Precisamente ele, que era sargento, fora designado para comandar a operação. Desta vez, os traficantes conseguiram se dar conta antes do previsto, e reagiram. Houve tiroteio. Alguns traficantes foram presos, outros foram feridos. Alguns inocentes foram mortos. Entre estes, encontrava-se justamente a mãe de Antônio Pedro.

No dia seguinte, apenas uma palavra ecoava pela favela, em uníssono, como se fosse um grito de guerra.

Vingança.

Agora, a gangue havia invadido a casa do policial militar. E era seu amigo de infância, Antônio Pedro, quem lhe apontava um revólver, e seu olhar parecia concentrar toda a fúria do povo sofrido da favela.

– Antônio – murmurou o policial, aterrorizado.

– Você matou a minha mãe.

– Eu? Eu não matei ninguém!...

– Você comandou a operação. Você matou a minha mãe!

– Eu não mandei ninguém atirar! Meus homens apenas revidaram quando o tiroteio começou!...

– Cale essa boca!

Pedro Antônio o contemplou com o terror estampado em sua fisionomia.

– Você era meu amigo, Antônio! Você sabe tudo o que eu passei! Você me conhece, você sabe que eu não sou ruim! Por favor, me dê mais uma chance, deixe-me viver!...

Antônio Pedro hesitou, por um momento.

Os olhos assustados de Pedro Antônio deviam estar lembrando em muito o que haviam sido os seus, dias atrás. O mesmo medo. Até as palavras eram parecidas.

– Você sabe o que eu lhe fiz – disse Pedro Antônio, baixinho. – Você sabe o quanto eu me arrisquei. Arrisquei o meu emprego por você...

– Anda logo com isso! gritou um dos outros componentes da gangue.

– Apaga logo o cara! incentivou outro.

Antônio Pedro olhou em volta. Seus companheiros estavam ficando ansiosos. Olhou de novo para o homem sob a mira de seu revólver.

– Mas você matou a minha mãe – disse, mais para apaziguar o pouco de consciência que ainda tinha do que realmente acreditando nas palavras que pronunciava, e puxou o gatilho.

Pedro Antônio tombou, com os olhos abertos, o buraco da bala bem no meio da testa. Pelo menos, tinha sido rápido. Os membros da gangue comemoraram com uma espécie de grito de guerra e se dirigiram para a porta da frente da casa.

Quando a abriram, porém, foram recebidos por uma saraivada de balas.

Atingido no peito, Antônio Pedro caiu, compreendendo o que acontecera. A mulher do policial militar, no banheiro, chamara a guarnição pelo telefone celular.

Os membros da gangue atiravam de volta. Antônio Pedro sentia sua vida escorrer pela ferida, junto com o sangue. Seu olhar encontrou o do amigo morto. Teve a impressão de que este o olhava com... Piedade... Lembrou-se da infância inocente, quando ambos haviam acalentado sonhos que incluíam uma vida melhor, um lar feliz, uma amizade que durasse até a velhice...

Estendeu a mão trêmula e fechou os olhos de Pedro Antônio, embora estivesse certo de que, quando o tiroteio cessasse, quando seus companheiros estivessem todos mortos ou presos, não haveria ninguém ali para fechar os seus próprios...

JUNHO DE 2007

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 06/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T515886