BELA VIOLA (Uma Crítica Social)

Na grande cidade, surgia mais uma linda manhã de sol. O dia parecia perfeito quando ela pagou o ticket do estacionamento dirigindo-se para a ala mais próxima da porta do saguão do charmoso Garden Hill Shopping. Depois de algumas voltas em ritmo lento, encostou sua Mercedes prateada sob a proteção da sombra de um frondoso cipreste.

Dali, em cima do seu salto quinze, acendeu sua cigarrilha francesa seguindo até o pórtico da suntuosa edificação, uma verdadeira Meca do consumo, onde rios de dinheiro eram desperdiçados com futilidades que para uns seriam desnecessárias e para outros, itens básicos de sobrevivência. Agora, despida de sua blindagem seguia rumo ao coração da galeria, a caminhada estranhamente lhe trazia stress, não era seu estilo empreender tanto esforço.

Destacando-se dentre os demais, seu corpo assemelhava-se à obra de um escultor meticuloso, uma Galatéia fitness elaborada na ponta de um preciso bisturi, mas enganam-se, pois ali apenas a natureza havia laborado, com a ajuda de uns cremes e loções, nada que comprometesse a originalidade. Enfim, seu perfeito estilo Barbie encantava como se estivesse embebida numa espécie de feromônio poderoso.

Seus penetrantes olhos verdes, sua pele rósea e o belo nariz fino formavam a perfeição facial emoldurada pelos maravilhosos cabelos dourados. Seu corpo sexy, de busto nem tão grande nem pequeno, perfeitos como pêras argentinas, suas pernas caprichosamente torneadas se movimentavam num rebolado cadenciado hipnotizando marmanjos de toda laia que vorazmente abandonavam seus afazeres apenas para contemplar tamanha perfeição. E ela seguia dando pinta de indiferente, mas ao desfilar cruzando o saguão sentia-se desnuda de seu modelito vermelho especialmente talhado por um conceituado estilista de Milão. Seus sentimentos eram um misto de asco e glamour, queria ser desejada, mas não por tão vil plateia, estava ela muito acima daqueles olhares.

Vencendo a pequena distância da aromatizada praça de alimentação, já na escada rolante, pois não poderia usar o espaço confinado do elevador panorâmico de forma exclusiva e também não desejava respirar o ar contaminado por outros pulmões, aconteceu o que tanto temia. Uma cria parruda de uma mulher perigosamente repleta de sacolas tocou em seu corpo, seus dedinhos como roliças salsichas estavam melecados de chocolate vindo a macular a doce cútis de seu braço. Enojada usou as costas da mão extremamente delicada para afugentar os germes deixados pelo pirralho. Teve tempo ainda, para com o olhar, despejar todo seu desprezo por tais criaturinhas. Em sua mente abominava a simples ideia da reprodução de seres tão inferiores que como ratos infestavam todos os ambientes, nenhum lugar do planeta estava a salvo daquela raça, o bicho pobre era resistente ao extermínio, por mais que houvessem tentativas de levar a cabo tal tarefa, ela sempre falhava, como as cabeças de uma hidra, quando uma era decepada duas tomavam seu lugar. Esses animais já deveriam nascer mortos, privando o mundo de sua imundície.

Quase no terceiro piso contemplou de longe um afrodescendente espreitando a vitrine da Cyril Muller Joias. Certamente teria comparsas, deveria se apressar, esse tipo de gente, como chacais, sempre anda em bandos alertas a uma boa oportunidade de ataque e hoje por questões particulares estava sem seu staff, azar o dela que desde sempre dispunha de dois ou mais brutamontes bem trajados com a única função manter distante qualquer tipo de contágio.

Não estava atrasada, contudo desejava chegar logo na loja para checar se a encomenda do visom exclusivo estava a contento, temia permanecer muito tempo entre o populacho. Quanto mais rápido melhor. Antes, ali era com certeza muito bem frequentado, os clientes eram mais seletos, agora parecia ter ocorrido uma revolução campesina onde os desqualificados acabaram expropriando aqueles agraciados com dádivas divinas.

Bem próximo da Maison Le Four enjoou-se um pouco. Começava a sentir calor. Devia encontrar rapidamente um lavabo, gotas de um fino suor insinuavam-se por sua face angelical.

Ali, somente banheiros públicos, bem higienizados aliás. Porém em sua mente estavam corrompidos por todo tipo de sordidez humana que às vezes lia nos contos fantasiosos da internet, tristemente não tinha como evitar o confronto. Não podia esperar. Sentia seu corpo tenso, apresou-se. Diferente de momentos mais tranquilos, não teve tempo de usar seu lencinho umedecido com aroma florais. Girou a maçaneta quase se atirando no interior daquele covil nauseabundo.

Um pouco ofegante, postou-se diante do grande espelho olhando direto nos olhos do seu próprio reflexo. Estava um pouco tonta e com leves náuseas. Bolinhas de suor brilhavam em sua fronte. Levou sua mão esquerda um pouco trêmula aos cabelos. Ela sabia o que viria a seguir.

Fartas mechas douradas soltaram-se ante seu toque. Uma tosse rouca e profunda escapou de seu peito. Na pia, uma nojenta escarrada de sangue escoou pelo ralo. Na sua nécessaire, como castigo, a prescrição de mais sessões de quimioterapia.

Como diria o velho matuto:

“Por fora bela viola, por dentro pão bolorento.”

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Este texto participou do desafio Entrecontos – Pecados Capitais, tentei aqui fazer algumas das alterações sugeridas. Sobre alguns comentários achei que o texto não foi bem interpretado, como fica difícil responder a todos justificando o injustificável, pois tudo é subjetivo, deixo uma pequena explicação:

O texto explora o pecado do orgulho (soberba), alguns não entenderam isso.

Tentei diminuir os parágrafos, mas por ser sobre um mesmo assunto ficou estranho.

Também não gosto de estrangeirismos e estes foram colocados para enfatizar que para o brasileiro tudo que vem de fora parece ser melhor e certamente não é. Temos muitas coisas boas por aqui.

Galatéia foi a escultura de uma mulher branca como o leite que pelo poder divino ganhou vida. Aqui, a Galatéia Fitness ganha seu corpo escultural na academia.

Num texto onde se trata tudo de forma arrogante, o termo politicamente correto “afrodescendente” mostrar a demagogia da sociedade, onde antes negão era um apelido familiar, extremamente carinhoso agora foi transformado pelo politicamente correto em xingamento. Veja exemplos tipo Neguinho da Beija-flor, Preta Gil dentre outros.

Por fim, realmente todo o texto foi para justificar a frase final MESMO. Todos somos um pouco do pão bolorento, nosso interior tem sempre um desprezo pelo alheio e a presença da doença vem mostrar que no fim todos somos iguais, a morte não faz distinção... Somos apenas adubo...

Quem quiser ler o texto em sua forma original é só visitar a página entrecontos, desafio pecados capitais.

... E que venham novos desafios...

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 08/03/2015
Código do texto: T5163027
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