A lenda do Demoligator

A LENDA DO DEMOLIGATOR

Um final de tarde tranqüilo. Bem, não tranqüilo ao redor das margens do Rio Tietê. As marginais estão congestionadas, como que em corriqueira paisagem. Arbustos semi encobertos por lixo mexem-se lenta e ordenadamente, como que se guiados fossem. Uma sombra parece deslizar pelas águas fétidas do rio. Um olhar mais observador identificaria um réptil, um enorme réptil.

Vindo, sabe-se lá de onde, sobrevive nas águas do Rio Tietê um jacaré, que em contato com a poluição constante, temperada com metais pesados, transformou-se em um animal de carcaça resistente, dotado de um rabo entremeado por chumbo, com especial poder de destruição.

Esgueira-se somente por margens camufladas, evitando curiosos olhares, evitando chamar a atenção dos passantes que, aliás, pouca importância dão ao citado rio. Quando em terra, são passos lentos, mas quando em água, sua poderosa cauda se comporta como um motor. Submerge como o mais moderno submarino e desaparece nas profundezas lodosas. Nunca se sabe onde ele vai reaparecer.

Numa tarde sonolenta, onde estranhamente as marginais do Rio Tietê estavam livres, colocou-se a observar o rápido fluir dos carros; paisagem tão estranha aos seus olhos. Foi quando um carro teve de parar por um motivo qualquer. Dentro, uma mãe irada que gritava com seu celular mudo, tentando remarcar a cabeleireira. No banco de trás, um garoto que com ela tentava explicar o seu dia a dia na escola. Parecia se referir a algum tipo de falta de atenção dos professores e diretora, que nunca lhe davam atenção, além de chama-lo de burro a cada exercício errado. Um moita de mato o mantinha incógnito.

Milhares de carros passavam enquanto a mulher discutia com o celular. Todos pareciam ignora-la, o que a tornava ainda mais irada. Já o garotinho desistira de falar-lhe. Mais uma tentativa e o motor do carro ligou, como que por encanto. E o carro partiu. Partiu rumo à uma cabeleireira. Na janela de trás, o garotinho parecia fazer um sinal socorro.

Numa moita na beira do rio, pareceu-se ver um sorriso de muitos dentes.

O céu foi aos poucos se fazendo escuro, como que passarela preparando, por onde desfilou um astro luminoso. Findo o desfile, novo astro, de mais forte luz, vai surgindo ao leste. Ainda fraco e por trás de um espesso nevoeiro.

Isso dificulta, aliás, impossibilita, que olhos apressados percebam uma longa sombra se esgueirando em direção à um esgoto do outro lado do rio.

Penetra a sombra, esgoto adentro, nadando contra a correnteza. Parece ter destino certo. Sabe guiar-se tubos idênticos, como se um mapa possuísse. Quase uma hora após, parece chegar ao seu destino. Para e examina o local. Cano após cano vai identificando cada um. Segue por um deles em direção à superfície. Antes de lá chegar, para para nova observação.

Lá em cima, em uma sala de uma escola, estão reunidos professores e a diretora de uma escola. Discutem pedagogicamente assuntos quase banais de maneira exageradamente formal. É inverno e as janelas estão fechadas.

O jacaré parece identificar um tubo, e com rápida mordida rompe o cano. É o condutor de ar que ventila aquela sala mofada. Enche os seus pulmões e poderosamente expira no cano. Aquele fétido hálito vai corroendo os velhos canos até chegar à sala. Alguns mestres vão dando conta do estranho odor, mas preferem se calar, como que protegendo a flatulência alheia. E, um a um, vão tombando sobre a mesa.

A diretora, que até então, motivada por um resfriado, protegia seu nariz com um lenço, se apercebe de que algo estranho acontecia. Em rápido gesto, se levanta da mesa e corre em direção à porta. Mal toca a maçaneta e poderosas mandíbulas decepam o seu braço que cai no chão juntamente com a maçaneta. Sua mão ainda executa alguns movimentos semi circulares. Aos poucos tudo cessa.

Os alunos agrupados no pátio da escola parecem guiados para fora por um portão com um cadeado esmigalhado com marcas que se assemelhavam a dentes. Logo após a escola desmorona, como se um poderoso equipamento de impacto tivesse quebrado suas paredes. Alguns peritos afirmam ter visto marcas lodosas nas paredes, em meio aos escombros, que se assemelhavam a patas de jacaré. Claro, ninguém lhes de importância.

- Foi assim mesmo que aconteceu! (Conta um garotinho ruivo.) Os adultos não permitiram que nada saísse nos jornais por medo de semear o pânico na cidade. As autoridades competentes possuem até uma divisão de investigações para o caso. É o chamado Arquivo D! Ah! D de DemoliGator! As investigações são até hoje sigilosas e poucas pessoas tiveram acesso a ele.

Eram mais de quarenta meninos e meninas que escutavam meio que incrédulos à aquela narrativa. Ficavam na dúvida sobre sua veracidade, mas percebia-se que muitos estavam arrepiados.

Toca o sinal e voltam todos para suas casas.

É final de tarde. As pontes sobre o Rio Tietê estão congestionadas. Uma menina, de olhos azuis, sentada no banco de trás de um carro, de cima da ponte julga ter visto uma enorme sombra esgueirando-se pelas margens do rio. Pensa em falar com sua mãe que fala ao celular. Para e prefere calar-se, como que guardando para si um segredo. Olha novamente e parece ver um sorriso por entre amontoados de sacos de lixo.

A menina sorri. Sente-se protegida.

Flexor Astronomics
Enviado por Flexor Astronomics em 03/04/2015
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