O maluco, o gato e o sanduiche de mortadela

O MALUCO, O GATO E O SANDUÍCHE DE MORTADELA

Eu sempre me perguntei até onde podia ir a lucidez. Sempre me questionei sobre a localização do muro que separa a sanidade da insanidade. Confesso que até já ajudei a rotular muita gente em uma categoria ou outra. Se não coloquei o rótulo, acho que muitas vezes empunhei um carimbo, como se arma fosse. Quantas vezes o recarreguei na almofada de tinta vermelha.

Acho que nunca desejei realmente responder as perguntas. Devo ter feito perguntas apenas para as respostas que eu julgava ter.

Dia desses, estava eu passando por uma rua do centro, cheia de pessoas sérias, afinal assim indicavam suas roupas, quando algo de anormal me chamou a atenção. Não exatamente anormal em sua aparência, mas algo que posteriormente me intrigou.

Ia eu caminhando dentro dos padrões de normalidade; apressadamente e com destino pré determinado, quando colido em ombros com um sujeito que vinha em sentido contrário pela mesma calçada. Colisões são fato corriqueiro entre pessoas com destino pré estabelecido e não se considera fato digno de nota.

Mas aquele sujeito parecia ter algum tipo especial de pressa. Havia surgido como do nada e após esbarrar em mim, entrou numa padaria, com pressa digna de citação.

Pelo adiantado da hora, não se tratava de café da manhã. Talvez um caso de fome urgente. Seu caminhar seguro não indicava destino ao banheiro. Pus-me a observar. Algo de curioso, dentro dos padrões de normalidade, acendeu dentro de mim.

O sujeito dirigiu-se ao balcão, e de longe eu podia perceber que ele gesticulava com precisão ao balconista que o atendia, solicitando o tipo de sanduíche que desejava. Tanto requinte de informação parecia indicar uma especialidade gastronômica ímpar, portanto digna de ser observada por um “voyeur” com pretensões de “connaisseur”.

Vi quando o atendente pegou uma grande mortadela e a colocou no fatiador, que prontamente pôs a operar. As fatias eram colocadas sobre um plástico, sob o olhar zeloso do cliente.

Finda a operação, o balconista abriu um pão e colocou aquelas fatias ordenadamente entre as duas partes. (Se ao menos fosse presunto eu chegaria a achar apetitoso.) Embrulhou e entregou ao solicitante, que se dirigiu ao caixa, para pagar. Procedimento criterioso.

Saindo do estabelecimento, dirigiu-se, agora mais calmo, pela mesma calçada de onde tinha vindo, com a aparência de quem tinha um objetivo.

Alguns poucos metros adiante, perco-o de vista. Redobro a observação e o vejo abaixado. Penso em ajuda-lo a se levantar, julgando tratar-se de um tombo.

Qual nada! Parece que ele desejava mesmo sentar-se na sarjeta! Obviamente um ébrio. Um ébrio faminto.

Cruzou as pernas e abriu o pacote. Parecia gesticular. Seguramente um maluco, daqueles que fazem maluquices. Procurei manter uma distância segura. Observei.

Em resposta aos gestos incompreensíveis aos meus olhos, surgiu um gato. Um gato daqueles de rua. Um legítimo vira-lata. Ele (o gato) parecia atender a um convite. Caminhava lentamente a partir de um amontoado de caixas de papelão empilhadas na calçada.

Aquele sujeito repartiu o seu sanduíche em pedaços e os entregava ao gato, que separava as partes e as comia individualmente. Pedaço após pedaço, o gato ia se aproximando daquele que o alimentava, sem parecer se importar com as pessoas que caminhavam apressadas pela calçada.

Pela calçada vinha também um catador de papéis, que logo cobiçou aquele amontoado de caixas velhas. O sujeito guardou momentaneamente o sanduíche e dirigiu-se para aquele lixo, seguido pelo gato.

De longe, eu pude perceber um estranho diálogo de gestos, onde o sujeito parecia oferecer algum dinheiro por aquelas caixas. O catador de papéis apenas recusou a oferta e seguiu em frente.

Aquele sujeito parecia interessado naquelas caixas velhas, pois remexia nelas. Pude perceber que retirava algo, mais algo e outro algo. Aproximei-me com a possível discrição e pude observar que eram filhotes de gato. Aquele sujeito os carregava cuidadosamente pela calçada, enquanto o sanduíche repousava em seu bolso.

Caminhou até uma praça, onde colocou seus pequenos passageiros sobre um gramado à sombra de uma estátua. Afastou-se e foi acompanhado pelo gato. Reabriu o pacote e sentou-se sobre a grama para novamente dividir o seu banquete.

Não pude deixar de reparar o olhar de reprovação das pessoas que passavam apressadas. Algo de espelho me apontava estes olhares. O sujeito levantou-se e pareceu despedir-se do bichano. Mesmo de longe, eu podia perceber um estranho brilho nos olhos; do sujeito e de seu convidado. Algo de liberdade parecia existir naquele encontro interespecífico. Assim como o gato não parecia se importar com os passantes, o sujeito parecia imune a todos os tipos de olhar que lhe eram lançados. Nem se preocupou em limpar com muito cuidado a calça que tinha algumas marcas de terra.

O sujeito desapareceu entre centenas de pessoas de roupas limpas e destinos pré estabelecidos.

No dia seguinte, acordei mais cedo. Era sexta feira e resolvi ir trabalhar sem gravata. Dirigi-me rapidamente para a padaria do dia anterior, com objetivo pré estabelecido.

Fiquei feliz em descobrir que não havia um muro separando a praça da calçada.

Flexor Astronomics
Enviado por Flexor Astronomics em 03/04/2015
Código do texto: T5194060
Classificação de conteúdo: seguro