A lontra tucutu e a sua gavetinha silenciosa

A LONTRA TUCUTU E A SUA GAVETINHA SILENCIOSA

O rio segue ruidoso por seu leito raso. Em cada esquina, como se curva fosse, param sons e detritos. Uma corrente de carros navega ladeada por guias e sarjetas. Camelôs ativos cativam passantes passivos. Tudo segue um caminho aparentemente natural. Nada parece afetar o seu curso.

Os habitantes ribeirinhos, e mesmo os de pontos mais distantes pouco se importam com a paisagem e com as modificações que o cada vez mais caudaloso faz.

Uma orquestra de britadeiras anuncia um novo retorno do sol que por vezes parece se despedir por entre as nuvens, sem formais acenos. Dois pivetes fazem um par romântico ao assaltarem uma velhinha. Pombos nos beirais dão um toque erótico aos olhos mais distraídos. Sinfonia de buzinas trazem alento aos sonhos dos que desejam chegar. Uma sirene parece estar fora do compasso. Tudo leva a crer que o regente esteja em férias. Um homem escorrega em uma casca de banana enquanto dá o nó na gravata. Ninguém ri. Ninguém perde o seu lugar na margem do rio

Como que vomitada por um elevador, despenca perto da margem do rio Tucutu. Esguia como toda boa lontra, desvia de um vaso e alguns outros obstáculos e vai direto para a sua canoa. Abre a porta, coloca a maleta sobre o banco e dá a partida com a chave pendurada num um chaveiro em forma de remo.

Vai ouvindo ruídos como que isolada das sinfonias que são executadas do outro lado do vidro. Em margem de um afluente chega ao seu destino. Deixa a sua canoa em um canto do rio, ancorando-a com o possível cuidado.

Vai colocando um passo logo após o outro, tendo o cuidado de não se esquecer de respirar. Vai novamente desviando de objetos pelo caminho.

Brilhante e aveludada chega a lontra em canto que lhe é seguro. Fecha os olhos e sente o ambiente.

Abre uma gaveta que desliza silenciosa como que se fosse parte de uma gabinete odontológico. Lá se sente protegida. Quando muito um molar para amolar.

Janela é paisagem e o céu, miragem. O som do ar comprimido parece apagar o som das diversas orquestras que dividem o palco lá fora.

Longe da beira do rio os seus olhos são como espelho que reflete uma suave luz. Mesmo nos dias em que o sol a visita, a mesma luz parece insistir em permanecer distante.

Lontra é feliz no rio. A sua proximidade a aquece. Mas o rio parece ser sempre distante. Mesmo dentro dele, ou ele dentro dela, parece algo como um corpo estranho. Talvez por não ser aquele o seu rio.

Mas com a proximidade da gaveta, ou como se estivesse em seu interior, traz um sentimento de segurança.

O rio continua segundo o seu curso. Carros vão buzinando novos arranjos. Afluentes tornam o rio mais caudaloso. O rio tem de seguir o seu curso.

A lontra começa a descobrir que também precisa seguir o seu curso.

Flexor Astronomics
Enviado por Flexor Astronomics em 04/04/2015
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