O sexo dos anjos

Vocês conseguem imaginar a cena de dois anjos se beijando?

Mas anjo, mesmo, vulgo “espíritos puros, pertencentes à primeira ordem na classificação dos espíritos”. Aqueles cuja principal característica que os distingue é exatamente o distanciamento da matéria, assim definido: “Não sofrem influência da matéria. Superioridade intelectual e moral absoluta em relação aos espíritos das outras ordens. Gozam de inalterável felicidade, visto que não estão sujeitos, nem às necessidades, nem às vicissitudes da vida material”.

Antes de começar minha história gostaria de esclarecer que eu encontrei a classe a que eu pertenço, infelizmente. Depois de ficar indignado quando um desses superiores, que têm ascendência moral sobre todos os outros, justificou a minha longa permanência no Umbral devido ao apego excessivo da minha pessoa às sensações da matéria, decidi estudar a fundo como isso funciona, quer dizer, essa tal Escala Espírita.

Nos livros encontrei que “a classificação dos espíritos baseia-se sobre o grau de seu adiantamento, sobre as qualidades que adquiriram e sobre as imperfeições das quais devem despojar-se”. Segue- se daí que existem três ordens, onde a mais inferior delas abriga os espíritos imperfeitos, caracterizados pela predominância da matéria sobre o Espírito e pela inclinação ao mal.

O extremo oposto da escala abriga os espíritos puros, os ditos anjos, os tais que são superiores em tudo. E no meio disso tudo, encontramos a Segunda ordem – Bons Espíritos. É a escala que abriga os espíritos onde há a predominância do espírito sobre a matéria. Desejo do bem.

Quando eu pedi explicação sobre o tal “grau de adiantamento dos espíritos” fui informado que todos os espíritos são criados por Deus, simples e ignorantes, e não maus, como eu supus em algum momento do meu delírio. Que então o destino de todos é a perfeição, cujo prêmio è ser classificado como Espírito puro, ou seja, totalmente livre do domínio da matéria.

E como passamos de uma classe à outra? E se eu não quiser deixar de apreciar as sensações da matéria?

Desculpe o leitor a minha insistência, mas meu cérebro espiritual não consegue entender o que tem de mais em querer curtir as sensações da terra... Porque inibir? Porque travar? O que tem de mal em deixar rolar? Se eu estou lá e todos estão comigo, principalmente belas mulheres que também me acham belo, porque não compartilharmos sensações?

Fui novamente, e bondosamente, sem arrogância mesmo, como um pai explica a um filho pequeno porque ele não deve estrangular o coleguinha da escola que pegou um lápis sem pedir, esclarecido quanto à minha condição ao ser recolhido por aquela casa fraterna.

Agora sim acho que consigo abordar o ponto da minha pessoa.

Eu vivi 65 anos na Terra. Eu era filho único de uma família de classe média e muito jovem ainda ingressei em um concurso público que me deu estabilidade financeira para viver a vida com conforto.

A condição de filho único me proporcionou a experiência única de ter todas as atenções voltadas pra mim. Eu era a única criança da casa. Só eu tinha festas de aniversário de arromba. Meu pai e minha mãe trabalhavam arduamente para proporcionar o meu conforto, porque eles não o tiveram quando os próprios eram pequenos. E pra piorar, embora eu achasse isso o máximo, eu atraia bajulações igual um pote de mel atrai abelhas.

Todos me achavam lindo.

Todos adoravam me presentear.

E quando grande eu continuei fazendo muito sucesso com as pessoas, mas depois descobri que fazer sucesso com as mulheres tinha outro significado.

Do lado de cá descobri que o meu “sucesso” tem uma explicação simples: magnetismo. Uma espécie de energia que eu espalhava ao meu redor, fazendo as pessoas se sentirem atraídas por mim.

Aí eu perguntei que culpa tinha eu, então, se eu fui dotado naturalmente de um poder afrodisíaco. Daí meu superior falou sem arrogância: Mas o que você fez com as pessoas que você atraia?

Aí é que tá... deixei rolar. Eu gostava de deixar as pessoas muito à vontade comigo. Elas se aproximavam, curiosas, ou expectantes e eu só esperava, sorrindo, claro, mas nunca dava o primeiro passo. Uma vez eu até transei com uma mulher no elevador e depois nunca mais a vi, ou sequer quis saber o seu nome. E juro por tudo que há de mais sagrado, eu entrava no elevador e encostava displicentemente na parede. Mas quando uma mulher atraente entrava, eu não impunha limites aos meus olhos, e elas muitas vezes também não queriam que eu as ignorasse.

E pra piorar, eu era lindo. Não lindo tipo modelo de passarela, mas lindo naturalmente, com os cabelos despenteados e suado. Eu cuidava para que meus músculos ficassem evidentes sob a camisa fina. Eu levava minha pele para tomar sol nos finais de semana. Eu praticava esporte regularmente e comia uma alimentação balanceada. Afinal, sobrepeso não era nada atrativo. Pressão alta e diabetes era muito incômodo.

E nem o envelhecimento abalou minha autoestima. Eu ficava mais atraente quanto mais cabelos brancos brotavam na minha cabeça. E a atração pelas mulheres era proporcional ao acúmulo de dias no meu calendário. Quanto mais velho eu ficava, mais atraia mulheres e jovens. A história de trocar uma de quarenta por duas de vinte não é folclórica, não...

E eu sabia mantê-las por perto. Eu era um afrodisíaco para os olhos e uma tortura para a libido delas. Eu sabia como usar as mãos, eis tudo.

Mas eu nunca quis me casar.

Embora houvesse apenas uma mulher que me levou a pensar nessa possibilidade, remota, mas foi apenas com ela que eu tive um vislumbre de uma vida a dois.

Nós estávamos na faculdade e ela era caloura. Ela cursava a faculdade de enfermagem, eu publicidade. Ela queria ajudar as pessoas, eu ser ajudado Uma morena de cabelos rebeldes, que definitivamente não obedeciam à escova. Ela adorava amarrar a juba em um rabo de cavalo e morder o lápis enquanto pensava.

Eu sei desses detalhes íntimos porque nós namoramos um tempo. Nós moramos juntos durante a faculdade, ou o resto do meu curso, pois quando ela entrou eu estava no meio, portanto dois anos de convivência, deliciosa convivência. Depois eu nunca mais a vi.

Mas a escala dos espíritos escancarou na minha frente. Ela “queria ajudar”... espíritos puros, despojados da influência da matéria. Me lembrei que ela era quase caipira, pois não se importava com a aparência. Não se desmanchava quando passávamos em frente a uma vitrine. Não trocava de bolsa regularmente. Não mostrava as partes mais claras do seu corpo para ninguém menos que eu. E olha que eu demorei a ver essas partes...

Então me pus a tentar formatar a minha vida pregressa ao lado dela. E se tivéssemos casado? Teríamos filhos, sim, claro, quantos filhos? Ela continuaria rebelde com a idade? Como ela envelheceu? Será que se casara?

De repente me lembrei que ela também já devia ter morrido, pois fui informado que eu ficara longos cinqüenta entre o céu e a terra, vulgo região do umbral.

Quê???

“Local de esgotamento dos resíduos mentais; é uma espécie de zona purgatorial onde se queima, à prestações, o material deteriorado das ilusões”...

Foi o meu apego excessivo às sensações sexuais que me prenderam nessa região circunvizinha à terra, que é formada para abrigar espíritos que ainda não se despojaram de tudo aquilo que não tem serventia para a vida superior.

Pois voltando aos anjos... Alguém viu algum beijando ou querendo fazer sexo?

Eu me lembro de quando fui avisado pelo medico que meu coração não estava bom das pernas. Foi então que um medo subitamente tomou conta de mim, que era de eu não poder mais sentir as sensações de prazer que somente o bom sexo me proporcionava.

Então eu retomei os cuidados com minha saúde. Fazia exercícios regularmente, mas agora com acompanhamento profissional, fora o sexo. Tomava as medicações, fazia os exames... E quando eu morri fiquei por muito tempo ao lado do meu corpo, por inconformação de não mais poder usar o instrumento que me proporcionava prazer. Foi então que o pesadelo começou.

O excessivo apego ao meu corpo me manteve ligado a ele por muito tempo.

Eu não conhecia, então, o poder da nossa mente. Então eu comecei a sentir minha carne apodrecendo, senti o odor de putrefação. Mas isso só não foi pior quando eu senti bichos roendo, perfurando meu corpo e a cena de larvas sobre mim surgia dentro da minha cabeça, me apavorando.

Quando eu não aguentava mais ver a degradação do meu corpo, me senti sendo puxado para longe. Não consegui ver por quem, pois subitamente minhas vistas escureceram. Mas vi quando essa força me largou. E ela me largou nessa região escura, com seres andando desordenadamente, tão confusos quanto eu.

“Uma casa onde não há pão, todos gritam e ninguém tem razão”. Lá encontrei os revoltados como eu, os desesperados, infelizes, malfeitores e vagabundos de várias categorias. Zona de verdugos e vítimas, de exploradores e explorados.

Depois descobri que a força que me puxou foi o pensamento dos que se afinavam comigo, pois que ele é um ímã poderoso... E é pelo pensamento que os homens encontram no Umbral os companheiros que afinam com as tendências de cada um.

E de fato, nem tudo foi só sofrimento... Eu era bom em fazer novas amizades, e logo encontrei um grupo de rapazes e moças que pensavam exatamente o mesmo que eu. Eles também eram muito felizes quando vivos e achavam o cúmulo terem sido arrancados à força de suas vidas confortáveis. Conheci até uma rainha, sê acredita...?

E um dia chegou um novo membro e nos convidou para um passeio na terra, para “matarmos a saudade”. Foi aí que ele nos ensinou a nos aproximarmos de uma pessoa viva e induzir ela a fazer sexo, pra gente sentir o prazer junto com ela. Gente... a coisa funcionava mesmo...

Quando vivo eu nunca pensei em sexo a três... depois de morto me achei muito careta... O negócio era bom mesmo...

Foi aí que eu aprendi a escolher minhas vítimas, aperfeiçoei a técnica e fui feliz por muitos anos. Depois de um tempo eu nem queria mais a companhia dos iguais, pois eu precisava dividir a colheita com os outros e isso me desagradava. Eu fui filho único, lembra? Tudo tinha que ser pra mim...

Não sei dizer por quanto tempo fui parasita sexual, pois esse é o titulo que eu me dei. Mais tarde descobri que isso tinha outro nome: Vicio. E que como eu, havia os viciados em cigarro, drogas, bebidas... O mecanismo era o mesmo em todos: o espírito induzia o ser vivo a praticar o ato que ele queria sentir prazer. Como ele não tinha o corpo das sensações, “usava o alheio” e servia muito bem, obrigado.

Mas aí deram, aqui, um nome para esse ser indutor de sensações. Obsessor. Eu não gostei.

Uma tela, igual uma televisão, me mostrou todas as cenas em que eu induzia outros a satisfazerem o meu desejo. Isso era obsessão, fui informado. Conseqüência do meu ato: eu prejudiquei muitas pessoas com o meu desejo egoísta de satisfação pessoal.

Mas e daí?

E daí que reza o livro sagrado que toda ação tem uma reação. Que eu posso até não querer progredir na escala espiritual, mas enquanto eu não auxiliar aquele que eu prejudiquei, nem se eu conquistar mais virtudes que um anjo, se eu não quitar as cobranças da minha consciência, nada feito.

Mas quem disse que eu estava com a consciência abalada?

Eu busquei prazer, é fato, reconheço sem vergonha, mas não fui egoísta. Eu as vezes até dava mais prazer que recebia... As mulheres que caíram nas minhas mãos saiam escandalosamente agradecidas. E foi com certa arrogância que eu expus todos os meus porquês para o ser superior que falava comigo.

Ele então ligou a televisão novamente.

Mas agora mostrava o depois. Depois que nos despedíamos. Eu e a mulher deliciosa. Foi aí que eu comecei a ficar com medo.

Uma frase está gravada na parede da enfermaria em que fiquei hospedado por muito tempo. “ Amar a Deus sobre todas as coisa e o próximo como a si mesmo”. Fui informado que esse era um dos caminhos a ser seguido para se chegar até Deus.

A maioria das mulheres que eu seduzi, pois agora subitamente achei que essa expressão cabia no meu caso, eram comprometidas.

Descobri também que a maioria absoluta das pessoas que encarnam na terra, pois fui informado que todos tem um propósito quando vão passar por lá, que a maioria tem um casamento “agendado” com alguém, para o resgate de ações passadas. Lembra a tal da ação e reação? Se eu prejudiquei, devo ressarcir.

E o casamento na terra, fiquei sabendo, na maioria dos casos, tem o objetivo do resgate das más ações praticadas no passado. Muitos desafetos se reúnem no lar humano para aprenderem a se amar e a se respeitar.

Eu atrapalhei muitas dessas reuniões.

Muitas mulheres que eu transei estavam já comprometidas com seus parceiros do passado e eu as desviei. Muitos espíritos devedores perderam a oportunidade do renascimento porque os futuros pais não se consorciaram.

E o casamento não consumido é postergado. Ou seja, eu atrasei a escalada evolutiva de muitos seres. Se perdeu a oportunidade, nova surgirá, mas com as mesmas pessoas. Resumindo: se eu não casei com você agora, futuramente não escaparemos.

Algumas, ou melhor, muitas mulheres dos meus relacionamentos já estavam casadas.

Como o casamento de almas em resgate é muito melindroso, pois que há mais baixos que altos, já que as almas não estão totalmente afinadas, as vezes um leve tremor pode abalar as convicções do casal de pombinhos.

E, cá entre nós, sexo comigo era um verdadeiro terremoto.

Mas também tinham muitas que eram Solteirinhas da Silva. Mas muitas dessas eu também prejudiquei, pois que se elas tinham uma tendência a venerar o sexo como eu, eu dei o pontapé inicial no mundo dos prazeres. Muitas viveram o sexo como eu. Não se casaram, não tiveram filhos e usaram seu corpo apenas para o prazer. E assim como eu, elas também supervalorizaram o corpo e lutaram com todas as garras contra o envelhecimento dele.

Ao contrário de nós homens, cuja beleza aumenta com a idade, a sociedade não valoriza a mulher com rugas e cabelos brancos. Muitas agarraram com firmeza as terapias anti-envelhecimento. Muitas morreram por esse motivo. Então eu fui um assassino indireto.

Então, diante de tantas evidências, voltei meu pensamento para a escala espiritual. No começo desse relato achei que eu me encaixava bem nos espíritos neutros, que não fazem o bem, mas também não desejam o mal. Mas agora nem sei mais...

Uma tristeza súbita tomou conta do meu ser, e me acompanhou por muitos dias. Em uma das sessões de terapia que eu agora fazia, meu instrutor me elogiou.

- É a dor do crescimento, meu filho, e isso é bom... Mas não estacione no desfiladeiro da culpa e do remorso, porque isso não constrói. Olhe pra frente... a ciência de recomeçar é das mais nobres que nosso espírito pode aprender...

Foi então que eu pensei: recomeçar como? Onde? Fazendo o quê?

- Trabalhe para o bem dos outros, para que possa encontrar seu próprio bem...

Mas como?

- Bastam o sincero propósito de cooperação e a noção de responsabilidade para que sejamos iniciados, com êxito, em qualquer trabalho novo... Mas não basta querer o serviço... tem que desejar servir... Você precisa aprender o valor do tempo e as bênçãos santificantes da oportunidade...

E como recomeçar?

- Precisamos aprender a preparar o campo mental conveniente, a proceder a semeadura de pensamentos novos, velar pela germinação, ajudar os rebentos minúsculos e aguardar a obra do tempo. Quando o trabalhador está pronto, o serviço aparece...

Diante da minha expressão desolada ele tentou me consolar.

- A vida do homem estará centralizada onde centralize ele o próprio coração. É de grande vantagem reconhecer os próprios erros, e bem aventurados são aqueles que estão em condições de pagar... Não se esqueça que a calma é garantia do êxito e que nunca falta concurso divino ao trabalhador de boa vontade... agora vá e reflita sobre essas palavras...

Então eu fui e refleti, muito. E agora estou aqui, pronto apara alguma coisa. Mas após muito refletir e estudar as possibilidades para o meu caso, cheguei a uma difícil decisão: eu não quero ficar estacionado, preso às sensações.

Foi com muita relutância que eu cheguei a essa conclusão. Por mais que as sensações são prazerosas, elas são superficiais.

Eu não conheci o amor verdadeiro. Eu não tive filhos. Eu deseduquei muitas mulheres.

Meu orientador concluiu junto comigo que abraçar essas responsabilidades seria um excelente recomeço.

Amor. Casamento. Filhas... muitas filhas.

- Mas eu vou precisar ser milionário para ter tantos filhos quanto eu prejudiquei...

- Não se esqueça da lição de Jesus que nos orienta que nossos filhos são todos aqueles a quem queremos bem... E o sexo foi a sua perdição, não foi isso?

Eu nem tive coragem de concordar verbalmente.

- Então sugiro que você repense a capacidade sexual do seu novo instrumento físico, pois talvez seja de grande ajuda uma certa dificuldade no campo afetivo sexual, não acha?

Nem respondi... Pobre, apaixonado, cheio de filhos “do coração” e ainda por cima Brocha?

A decisão estava tomada, mas não dei bobeira em marcar nenhuma data. A julgar o tamanho do compromisso, precisaria me preparar muito. Nova falha acarretaria outro caminhão de débitos. A calma é garantia de êxito, e eu estava apavorado. E definitivamente eu ainda não estava em condições de pagar.

Ainda não.

Só sei que me re-matriculei na terapia, sem previsão de alta. Mas meu orientador me mandou estudar Kardec.

Esse foi meu recomeço, o “preparo do campo mental conveniente, para proceder a semeadura de pensamentos novos...”

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 15/04/2015
Código do texto: T5207493
Classificação de conteúdo: seguro