Emily

Morri quando senti o sangue quente escorrer por minhas mãos, o néctar da vida escapando de mim, fugindo do corpo que antes tinha animado, correndo em direção ao chão, preferindo a morte que a humilhação da traição, do assassinato. Podia ser o meu sangue, mas não era. Outro destino foi reservado a mim. Destino sádico, que me deixou sozinho, abandonado, viúvo. Sim. Estou morto, e morri naquela noite fria de janeiro. Morri quando vi os olhos de minha amada perderem o brilho, quando senti seus membros ficando frios e rijos, quando seu último suspiro, doce e delicado, saiu de sua boca. Morri naquela noite, quando minha querida Emily teve seu coração perfurado pelo punhal de um criminoso. Ao matá-la, o homicida me matou. Agora estou preso dentro de um mundo de sofrimentos e torturas e visões do sorriso. Estou morto, mas continuo a sentir as dores que o homem maldito causou.

Por que? Por que eu? Por que Emily? Por qual razão um ser tão puro quanto uma fada, incapaz de fazer mal a qualquer um, foi tão brutalmente assassinada? Vi tudo acontecer, sem poder fazer nada. Vi o homem tirar a adaga do bolso e cravá-la no peito alvo e miúdo de minha esposa. Tudo aconteceu de forma muito rápida, não se foi dado um segundo para que ela pudesse reagir, não me foi dado um segundo para que pudesse protegê-la, nem para perseguir o homem. Tive apenas tempo para me ajoelhar ao seu lado, segurá-la em meus braços e agonizar enquanto via a vida se esvaindo de seu corpo. Enquanto o homem ria e comemorava, eu chorava e lamentava. Seu sangue brotava de seu peito e escorria, sem parar, como uma cachoeira, a cachoeira mais linda que já tinha visto. Não pude fazer nada, senão olhar, aproveitar meus últimos segundos com a mulher da minha vida.

“Eu te amo”, foi o que ela disse. Foram suas últimas palavras. Não pude responder, me senti envergonhado. Não conseguia, depois de ter a deixado morrer, depois de não ter conseguido controlar o assassino. Amaldiçoei a doença. Amaldiçoei a dualidade. Amaldiçoei o ódio que estava crescendo dentro de mim há tempos, o ódio por Emily.

Sua bondade inabalável me irritava, sua beleza machucava meus olhos, todas as qualidades que faziam de mim o homem mais feliz do mundo, faziam também o contrário. A pronúncia de seu nome estremecia meu corpo. Passei a tratá-la de forma rude, grosseira e maldosa. O que recebia em troca? Mais bondade. Eu só queria uma briga, só queria que ela revidasse, reagisse aos meus maus-tratos. Mas não, conforme minha crueldade aumentava, sua bondade aumentava proporcionalmente, me torturando mais e mais, aumentando mais e mais meu ódio. Depois de meses, surtos de ódio começaram a me afligir, e eu descontava tudo em Emily.

Começou com um tapa na sua bochecha esquerda. Não sentia algo tão bom há muito tempo. Não senti remorso. Minha vontade só aumentou, e as agressões se tornaram mais frequentes e mais intensas. Cheguei ao ponto de bater nela todas as noites e espancá-la ao menos uma vez por semana. Quanto mais socava, mais vontade tinha, era um vício, meu ópio era machucar Emily. O que recebia em troca? Mais bondade. Estava se tornando insuportável. Ela nunca reagiu enquanto eu feria seu corpo frágil. Na manhã seguinte aos piores espancamentos, me eram dados os melhores tratamentos. Com o tempo, seu rosto não era mais bonito como costumava ser, desfigurado pelos ferimentos feitos por mim. Para mim, porém, ela parecia ainda mais bonita quando estava machucada, os hematomas e cortes combinavam perfeitamente com sua pele pálida e seus longos cabelos loiros. Encarar seu rosto deformado todo dia desencadeava ainda mais ódio dentro de mim. Seus olhos azuis continuavam brilhando ao me ver, continuavam com a inocência e vivacidade, mesmo rodeados por feridas grotescas. Sua boca continuava a esboçar um sorriso tímido à minha aproximação, continuava delicada e graciosa, mesmo machucada.

Mas eu a amava, tanto quanto se pode amar uma pessoa. Quanto mais ódio crescia dentro de mim, mais eu a amava. Odiava o meu amor por ela, e quando percebia que ele estava crescendo, tinha surtos de raiva terríveis. E depois a amava mais. Meus sentimentos eram inconstantes, mudavam a cada hora. Depois de maltratá-la, era assolado pelo arrependimento e voltava chorando para seu abraço. Depois, ao perceber a manifestação de meu amor, o ódio voltava mais forte ainda. Era difícil compreender quem estava certo, o ódio ou o amor, longas reflexões não serviram para nada, estava confuso e sem respostas para minhas perguntas. Por que? Por que me foi dado o amor e em seguida o ódio? Por que sentia vontade de machucar a pessoa que mais amava no mundo?

O dia no qual morremos foi conturbado entre nós. De manhã, deixei-a inconsciente depois de espancá-la com um cinto. Passei o resto da manhã cuidando do seu machucado. De tarde, deixei-a inconsciente depois de espancá-la com uma cadeira. De novo, tratei de seus ferimentos com todo cuidado e carinho possível. De noite, não resisti, ela deu o xeque-mate. Emily estava deitada na cama, mal conseguia se mover por conta das agressões anteriores. Eu estava sentado na cadeira ao lado da cama, sentindo o maior arrependimento desde então, até que ela sussurrou, com a voz fraca, “Eu te perdoo”. Ela nunca havia dito isso, e eu nunca havia pedido por seu perdão. Mas ela me perdoava. Depois de tudo que eu tinha feito, ela me perdoava, ainda me amava. Naquele momento, senti o maior amor do mundo, ao mesmo tempo em que sentia o maior ódio. Levantei atordoado e saí do quarto cambaleando, tonto. Não conseguia raciocinar. Fui até a sala e tirei a adaga da bainha. Não consegui controlar o assassino. Voltei ao quarto e apunhalei Emily. Explodi de felicidade e de tristeza. Sorri e chorei.

Por que? Por que dei a mim mesmo o sofrimento? Por que matei com as próprias mãos a minha amada? Por que tirei de mim o amor, a coisa mais importante da minha vida? Por que me matei?

Gocht
Enviado por Gocht em 24/04/2015
Código do texto: T5219251
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