Zoreia

Tínhamos apelidos óbvios quando criança: Cachorrinho e Zoreia. Todo mundo conhece um Zoreia. Zoreia era meu primo. Tinha orelhas de abano. Nas férias de Janeiro vinha passar duas semanas lá em casa. Morava na roça. Tinha calos nas mãos e calcanhares rachados. A planta do pé era avermelhada. Os dedos das mãos eventualmente não tinham unha. Na roça, tirava leite da vaca, tratava o porco, plantava pra comer, essas coisas. Nunca leu um livro e pouco assistia televisão. A família do Zoreia me lembrava Vidas Secas. No barraco de madeira bruta enfiado no mato ninguém nunca soube o que era Vidas Secas. Descontavam na orelha do guri a desgraça da miséria.

Lá em casa, brigávamos pela bicicleta, assistíamos a Seção da Tarde. Sustentávamos as lombrigas comendo pão com açúcar. Depois jogávamos bola na chuva. Cortávamos os pés em garrafas quebradas cravadas no terreno suburbano. Zoreia era seco, tinha pouco pra comer. Eu era miudinho, era impertinente. Queríamos ser jogadores de futebol. Não deu nada certo.

Todo janeiro meu tio nos levava na festa do Bastião. Segundo ele, o resultado da colheita era dependente de São Sebastião. Tinha promessas para pagar, dizia, mas reclamava do sol. Nunca o entendi. Íamos de ônibus. Zoreia e eu apontávamos com o dedo o ônibus certo. O velho não sabia ler. Letras não lhe diziam nada, exceto quando impressas em rótulos de garrafa.

Na festa, um homem cantava números no fundo do pavilhão apinhado. Meu primo e eu chutávamos copos plásticos, comíamos pastel e brincávamos na pescaria. Uma vez ganhei uma régua, Zoreia, um sabonete. Logo eu que não gostava de números. Logo Zoreia que não gostava de tomar banho.

Zoreia e eu tínhamos a mesma idade. Nascemos no mesmo mês, no mesmo ano. Mas Zoreia parou de fazer aniversário com 21. Com o tempo, paramos de nos falar. Na adolescência, saiu fora dos canteiros. Enveredou por caminhos escusos. Quatro estampidos foram o suficiente para interromper o canto dos galos e calar a cachorrada. Zoreia, que era agricultor, teve quatro caroços plantados no tórax numa noite de lua cheia. Os policias queriam certeza com as flechadas.

No dia seguinte não houve festa mas houve procissão. Bem Menor que a do Bastião. Passos curtos nos corredores do cemitério de terra vermelha. Ninguém procurou sombra. O velho não reclamou do sol. Na cova onde o plantaram Zoreia nunca germinou. O padroeiro é impiedoso com certas culturas.

Mailo Maciel