CHUVAS DE MARÇO

Era o ano de 1959. Na pequena cidade de Jaboticabal, no interior paulista, naquele mês de março, estava sendo exibido o filme “Chico Fumaça” estrelado pelo grande ator, produtor e diretor, Mazzaropi. O cinema da cidade era o Cine Theatro Polytheama, que ficava na Praça 9 de Julho. Era um prédio antigo, inaugurado em 1911, com uma fachada muito bonita que lembrava o estilo neo-clássico. Posteriormente foi destruído por um incêndio em junho de 1967 e, depois de ficar interditado durante muito tempo, foi transformado num estacionamento provisório, para em seguida ser permutado com o prédio onde funcionava o Banco do Brasil, na mesma Praça Nove de Julho. O antigo prédio do Banco do Brasil passou a ser a sede da Câmara Municipal, e no terreno do antigo cinema foi construído o prédio do Banco do Brasil, que ali permanece até a atualidade.

O sistema de distribuição de energia elétrica era feito pela CPFL - Companhia Paulista de Força e Luz - onde, posteriormente, no período de 1967 a 1978, tive a honra de fazer parte do seu quadro de técnicos eletricistas. Mas naquela época, o sistema de distribuição de energia elétrica era muito precário, devido à produção de energia ser muito aquém da demanda de consumo. As linhas eram muito velhas, necessitando de reformas, o sistema de proteção também era deficiente e, a qualquer ameaça de chuva já ocorriam desligamentos que, muitas vezes permaneciam por horas, até que houvesse o restabelecimento.

Como naquela época, o cinema era uma das mais importantes formas de diversão para as pessoas, a sua programação consistia de duas sessões diárias de segunda às sextas-feiras, sendo a primeira às 19:30horas, e a segunda às 21:00horas. Nos sábados, além das duas sessões, era passado um capítulo de um seriado. Os seriados daquela época poderiam ser comparados às novelas e séries de TVs que são apresentadas atualmente.

Nos domingos, além da programação noturna com duas sessões, no período da tarde, às 14:00horas, havia as matinês, onde era projetado um filme e um capítulo de um seriado destinado aos adolescentes. O seriado de sábado à noite era diferente do seriado das matinês dos domingos. O ingresso para as matinês custavam Cr$ 2,00 (dois cruzeiros).

Normalmente, nos sábados, muitos adolescentes assistiam à primeira sessão, que começava às 19:00horas e terminavam por volta das 20:30horas, assim não havia risco de adolescentes circularem pelas ruas nesse horário. Os namorados, normalmente, preferiam a segunda sessão, que terminava por volta das 22:30horas, horário mais propício para as delícias do namora.

Eu morava numa chácara que não era servida por energia elétrica. A iluminação da residência era feita por lamparinas, cujo combustível era o querosene que comprávamos, por litro, nas vendas. Vejam que os armazéns, que eram chamados de “Vendas”, além dos produtos alimentícios, também vendiam querosene. Não havia, naquela época a tal de “Vigilância Sanitária”, portanto, pelo fato de não ter luz elétrica na minha casa, e nem iluminação pública nas ruas, eu estava acostumado a andar no escuro.

E, naquela noite de março de 1959, não foi diferente. Era um sábado e o tempo prometia chuva, mas não com muita certeza. Estava eu assistindo o filme “Chico Fumaça”, numa cena em que acontecia no filme uma chuva torrencial, e na casa do Chico Fumaça, que era coberta por telhas todas quebradas, chovia mais dentro do que fora da casa, e o Chico Fumaça para se proteger colocou uma bacia na cabeça, só que com a parte de dentro da bacia para cima, e quando a bacia se enchia de água, ele despejava voltava a coloca-la na mesma posição. De repente, houve um estrondo muito forte. Era o barulho de um trovão. Logo a seguir apagaram-se todas as luzes. Fora do cinema estava uma chuva torrencial. Os “lanterninhas”, que eram funcionários do cinema que ficavam com lanternas mostrando os lugares para as pessoas que chegavam atrasadas, depois que o filme já havia começado, tentavam acalmar o público.

O tempo foi passando e nada da luz voltar. Todo mundo estava impaciente. A chuva não dava sinal de que iria parar.

E toda vez que chovia torrencialmente, como naquela noite, o rio Jaboticabal, acabava transbordando com a água passando por cima das pontes, que, normalmente eram de madeira, e não raro, acontecia das pontes serem levadas pela força das águas.

Já eram mais de 22:00horas, e nada da chuva parar. Eu estava aflito pelo fato de minha mãe não saber o que estava acontecendo e, assim, tomei a decisão de ir para casa mesmo embaixo da chuva.

Desci pela Av. Marechal Deodoro e, ao chegar na ponte do córrego Jaboticabal, a água já estava começando a passar por sobre a ponte. Arrisquei-me e passei correndo por sobre a ponte conseguindo chegar do outro lado. Quando cheguei na Rua José Bonifácio, no Bairro da Aparecida, estava uma escuridão só. Eu seguia tentando me proteger da chuva sem obter resultado, quando vi, na escuridão, o vulto de uma pessoa. Ao me aproximar, reconheci o senhor Joaquim de Deus, que trabalhava como sacristão na Igreja da Aparecida. Esse senhor tinha uma perna amputada e usava uma prótese para andar, apoiado em uma bengala. Morava um quarteirão abaixo da minha casa com duas irmãs solteironas, aliás, os três eram solteirões. Eram o Joaquim, a Celina e a Betina. Então eu percebi que ele estava totalmente desorientado e me ofereci para leva-lo até sua casa. E fomos conversando, vagarosamente, porque ele tinha dificuldade para andar, e ainda mais numa rua de terra, com chuva, e o barro que ela produzia.

Quando cheguei em casa, minha mãe estava aflita, mas logo se acalmou e agradeceu à Deus por eu ter voltado são e salvo. Enquanto eu passava por todo o sufoco, minha mãe estava em casa orando para que Deus me guardasse e protegesse. E não tenho dúvidas de que suas preces me ampararam.

No dia seguinte, tive a triste notícia de que, numa ponte mais abaixo de onde eu havia atravessado o rio, um colega meu de escola que se chamava Augusto, ao tentarem atravessar a ponde, sua irmã Bernadete e um irmãozinho de nome João, caíram no rio. Augusto que sabia nadar muito bem, ao ver seus irmãos caírem no rio, não titubeou e lançou-se em seu socorro. No outro dia foram encontrados os corpos dos três. Foi uma comoção geral e muita tristeza no enterro daquelas três crianças, e eu fiquei a pensar que poderia ter tido a mesma sorte que eles, mas Deus atendeu aos pedidos da minha querida mãe e me protegeu. Fato que permitiu eu poder contar este acontecimento da minha vida.

Ilha Solteira/SP

08/05/2015 – 12:38h

Daniel L Oliveira
Enviado por Daniel L Oliveira em 08/05/2015
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