O sol acabara de surgir no primeiro dia do mês de março de 1955, na próspera Conceição do Almeida. O armazém de D.  Francisca está vazio, pois é época da entressafra da atividade fumageira no Recôncavo Baiano. Os cães latem avisando que há visitas.
- Bom dia, D. Francisca, minha madinha! Vou levar meus mininos pra a escola. – cumprimenta Dália, com um tom de voz firme em seu corpo leve como uma pena.
D. Francisca, branca como algodão, ajeita os cabelos ralos, e lhe diz:
- A hora é essa, Dália. Ensinei a Pedro e Paulo algumas palavras e estão começando a ler, portanto não vamos perder a oportunidade de entrar nessa nova escola.
- Inté, madinha. Agradicida de ter ajudado os minino.
- Vão com Deus! – exclama Francisca, despedindo-se.
- Francisca, eu não entendo porque você tem que ajudar todo mundo. Esses meninos ficaram enfiados aqui por mais de três meses, comendo e bebendo, conforme me contaram – reclama Berenice, com a voz trêmula de raiva. Ela é uma das suas irmãs cujo marido faleceu recentemente, motivo pelo qual mudou-se para casa de Francisca.
- Nice, eu sempre vivi assim. A minha vida faz sentido porque eu ajudo as pessoas.
- Não percebe que falta para nós? Eu vi você dando o nosso almoço de hoje para a mãe dos meninos.
- Você se preocupa demais, irmã! Deus provê, Deus proverá. Era só um pedaço de carne de sertão. Além do mais, nunca me faltou nada de que precisava nesses anos todos.
Berenice saiu esbravejando e repetindo que não a entendia. Para sua surpresa, por volta das onze horas, o vizinho passa para trazer quatro peixes.
- D. Francisca, me alembrei da sinhora e truxi esses peixes. Ficamos muito agredicidos da sinhora registrar o nascimento do nosso fi menor. Agora, ele tem nome e papé.
- Obrigada, Sr. José. Vou preparar o almoço com eles agora mesmo.
- Inté, Dona.
- Deixa que eu preparo. – diz Berenice, pegando os peixes da sua mão e descansando-os sobre a panela, enquanto reflete sobre a chegada do almoço.
- Ô de casa! Madinha!
- Lá vem aquela mulher de novo! – exclama Berenice, batendo os pés no chão.
- O que foi que houve, Dália? – indaga-lhe Francisca, perplexa ao ver a mulher descabelada, chorando, e ao notar as crianças com lágrimas nos olhos.
Dália sentou-se na balaustrada e continuou a chorar junto com as crianças. Os cachorros pararam de latir e se fez um silêncio tenebroso. De repente, a senhora ergue-se de um ímpeto e brada:
- A sinhora não vai acriditar! A professora mandou os meus minino de volta por mode que eles estavam cherando a sebol de fumo. Por mode deles num tarem de palitó e de sapato tumbém. – desabafa Dália aos prantos, esfregando as mãos nos cabelos, antes trançados.
- Fique calma, Dália! Nós vamos resolver isso. – tranquiliza Francisca, descansando as suas mãos sobre os ombros da mãe desesperada.
- Expriquei tudo conforme a sinhora me disse. Falei pra professora que a sinhora ensinô os meninos a ler. Os otos meninos riram dos meus, gaitaram...Oia a cara deles, madinha! Viemos o caminho todo chorando...A sinhora precisava de ver a cara da professora oiando os meus minino com disprezo, cuma se fosse um animá doente. Minha Nossa Sinhora, nunca ficamos tão tristes. Quiria que nossos minino tivesse letra. Nois insina tudo que sabe de boca, mas nois num entede os papés – detalha tudo para Francisca, andando de um lado para o outro e, por vezes, olhando para o alto e coçando a cabeça.
- Eu compreendo que foi uma situação desagradável, mas nós temos o que fazer. – diz Francisca, gesticulando com suas mãos compridas e olhando para a imagem de Nossa Senhora da Conceição.
- Fazer cuma, sinhora? O fumo acabou. Nois só tem pouca coisa até agosto se o tempo ajudar nois. Trabaiei de agosto a janeiro, vumitei feito uma cundenada para separar as foias meor pra mandar pras Oropa, o fumo Mata Fina. Dipois de quinze dias de parida, tava lá no armazém do Coroné Ameida pra mode trabalhar, ligeirinha pro Mestre num brigar com nois. Prantamos uma roça de fumo e sequemos eles no teiado de casa. De noite, nois trabalha com o candeeiro. Nois fede mesmo, mas num é purque nois quer. O fumo gruda na mão, nos cabelo e no corpo. Fizemos tudo que pudia, minha madinha. – lastima-se a pobre mulher negra, trabalhadora sem carteira assinada.
- Dália, calma! Deixe os meninos aqui, pois eu vou fazer os paletós. Vou dar banho neles com um sabão especial para tirar o cheiro do fumo.
- Mas os mininos não tem sapato, madinha. Não vão deixar eles entrar do mermo jeito – retruca Dália, com as lágrimas caindo.
- Fique em paz, Dália. Vou resolver isso também, mas vocês vão tem que dar um jeito para eles não dormirem na casa onde descansa o fumo. Façam um puxadinho do lado para eles dormirem.
- Mas madinha, os mininos ajuda nois a enrolar o fumo.
- Eu sei disso. Deixem os meninos mexerem com o fumo quando chegarem da escola e por algumas horas. Depois não devem pegar mais no fumo até porque precisarão estudar. Nos dias que não tiverem aula, aí, eles poderão ajudar vocês por mais horas. Hoje, eles dormem aqui e, amanhã, você passa para levá-los à escola. Reservarei sabão para vocês todo mês e uma garrafa de leite todo dia.
- Agredicida, madinha. – responde-lhe a mulher magra, queimada como um carvão e encolhida feito maracujá maduro.
- Francisca, você enlouqueceu? Deixar esses meninos aqui? Como vai providenciar os sapatos? – indaga-lhe Berenice, logo despois da saída de Dália.
- Minha irmã, fique em paz! Termine de preparar o almoço, pois vou costurar as roupas dos meninos. – disse-lhe, enquanto colocava leite em duas canecas e estendia a fazenda para cortar dois moldes.
- Madinha, a gente pode pegar os livros?
- Antes, lavem as mãos e tomem esse leite. Venham depois para eu fazer umas medidas. Em seguida, podem estudar.
Os meninos comeram depois que rezaram. Tomaram banho com o sabão de Francisca, experimentaram o paletó e a calça alinhavados e estudaram. Jantaram após a oração. Na sequência, lustraram um par de sapatos que tinha sido de um outro afilhado de Francisca, ajudaram a lavar os pratos, enquanto Francisca contava uma história do livro de fábulas de Le Fontaine.
Francisca abraçou os meninos e os deixou dormir. Berenice insiste com as perguntas e não sossega:
- Francisca, o que vai fazer com um par de sapatos para dois meninos? Só um deles poderá ir à escola. Quem que você vai escolher: Pedro ou Paulo?
- Irmã, vá descansar. Preciso terminar os uniformes e fazer minhas orações. Deus a abençoe e lhe dê um bom descanso. – diz, abraçando-a sobre os seus vastos seios.
Cedo, o galo cantou e Francisca acordou os meninos para tomarem um café reforçado com leite, ovos e pão. Em seguida, tomaram banho. Pedro e Paulo pareciam príncipes com a roupa que usavam. Ela os perfumou e deu um sapato para cada um. Nos pés sem sapato, enrolou uma faixa de tecido de algodão. No calçado do menor, encheu a frente de algodão.
D. Dália chegou e, quando viu os seus filhos vestidos e calçados, ajoelhou-se aos pés de Nossa Senhora na entrada do armazém e beijou as mãos de Francisca. Atrás do balcão, Berenice olhava os meninos que sorriam sem parar e balançava a cabeça, esboçando um sorriso ao ver que cada um tinha um pé enfaixado.
- Pedro e Paulo, vocês estão prontos para irem à escola. Quando chegarem, digam bom dia à professora e aos colegas. Tenham cuidado com os cadernos e lápis que lhes dei. Em casa, tomem banho como eu ensinei com esse sabão e essa escova e, com o sabão de coco lavem os uniformes todos os dias. Passem perfume como orientei, nem muito nem pouco – recomenda Francisca aos meninos e volta-se para Dália perguntando se ela e o marido fizeram o puxadinho como combinado.
- Fizemos, sim sinhora. E, hoje, quando os minino voltar, nois vai terminar o restante. Agredicida madinha! – exclama Dália, emocionada. Depois, beija a cabeça dos filhos e diz: - Num é que os minino tum perfumados, madinha! Parecem uns coroné.
- Vão com Deus! – despede-se Francisca, com um sorriso nos lábios e paz no coração.
Na escola, Pedro e Paulo, finalmente, foram aceitos por estarem vestidos segundo as regras da escola. Sabiam ler muito mais do que aqueles que lá estavam.
Licia CostaPinto
Enviado por Licia CostaPinto em 16/05/2015
Código do texto: T5243595
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.