Por causa de um fusca vermelho

Jair estacionou o fusca vermelho no estreito pátio-garagem de sua casa, no Telégrafo, subúrbio de Belém. Naquele dia, havia pedido ao patrão para sair mais cedo do emprego. Contemplado num consórcio de veículos usados, pegou o fusca vermelho na revendedora e, para comemorar, foi tomar generosos tragos da “91”, aguardente que muito apreciava. No bar, disse aos amigos:

-- Hoje, eu pago todas! Tô de carango novo, gente! Fui sorteado...

Jair tinha motivos para estar alegre. Meses de sacrifício e, finalmente, poderia dirigir o fusca vermelho.

Jair havia realizado uma de suas aspirações de consumo. O fusca vermelho significava mais conforto para a família. Significava, também, prestígio. Naquele momento, Jair acumulava dois estados de espírito: o da euforia e o da vaidade.

-- Dona Zilda ia ver! – dizia Jair referindo-se a Dona Zilda, a vizinha que por ter um Chevette, andava sempre com o nariz empinado.

O ruído do motor atraiu toda a família. Os “do lado” vieram à janela. Etelvina, a esposa, interrompeu a novela e acorreu para ver a novidade, seguida dos filhos Pedrinho, de sete, e Zezinho, de cinco anos.

No pequeno espaço que sobrava entre o fusca vermelho e as paredes do pátio-garagem, a família, espremida, extasiava-se. Etelvina foi logo apontando para os amplos faróis traseiros que fizeram essa versão do fusca ficar conhecida como “Fafá de Belém”. Pedrinho e Zezinho contornavam, admirados, o que seria o substituto da velha bicicleta, até então usada para o trabalho, para levar e buscá-los na escola, para as compras na feira e, até mesmo, para alguns passeios.

Jair desligou o motor do fusca vermelho e, como fazia todos os dias ao chegar do trabalho, foi para o chuveiro. Etelvina, esgotado aquele primeiro momento de entusiasmo, voltou à novela e os meninos às brincadeiras. Pedrinho retomou o quebra-cabeça que lhe havia sido dado pelo avô. Ninguém reparou, que Zezinho foi à cozinha e, de posse de uma pequena faca, correu em direção ao fusca vermelho e começou a enchê-lo de garatujas. As ranhuras foram feitas, como ele disse mais tarde, para agradar ao pai. Pensou que o carro ficaria mais bonito com seus desenhos. Zezinho não esqueceu nenhuma das portas, nem os quatro pára-lamas. Eram sóis, estrelas, bonecos esqueléticos, caretas, e outros rabiscos ininteligíveis e destituídos de encadeamentos lógicos.

Ao sair do chuveiro, ainda embrulhado na toalha, Jair retornou ao pátio-garagem e quando viu os riscos na lataria do fusca vermelho foi logo vociferando;

-- Quem foi o merda que arranhou o meu carro?

-- Não fui eu. - apressou-se Pedrinho.

Zezinho, quando percebeu a ira do pai, parece ter compreendido o seu equívoco. Começou a tremer. Então, Jair foi à cozinha e de um dos cantos retirou uma ripa, sobra de um reparo que ele havia feito na cerca do quintal. Em seguida, chamou Zezinho e mandou que ele colocasse a mão direita em cima da mesa. Com a ripa, bateu, fortemente, na mão de Zezinho. Apesar dos gritos desesperados do filho e das diversas intervenções de Etelvina, Jair prosseguiu com o castigo. Fez a mesma coisa com a mão esquerda do menino. Jair ofegava. Estava desatinado e a baba escorria-lhe da boca. Estava surdo aos gritos de Zezinho e indiferente aos apelos de Etelvina. Somente depois que Etelvina se atracou com ele, Jair parou de castigar o filho. As mãos de Zezinho estavam dilaceradas e sangravam, tal a violência das pancadas. Zezinho não parava de chorar

Vendo a gravidade da situação, Etelvina, com a ajuda de vizinhos, levou o menino para o Pronto Socorro Municipal. Enquanto isso, ainda sob efeito do álcool, Jair foi dormir.

De madrugada, Jair foi acordado com a campainha. Pedrinho dormia a sono solto. Etelvina e Zezinho haviam retornado do Pronto Socorro. Zezinho correu em direção ao pai e levantando os braços enfaixados e destituídos das mãos, foi logo dizendo:

-- Pai, eu prometo que nunca mais vou riscar seu carro. Você ainda está zangado comigo?

Diante daquela manifestação de Zezinho, Jair parece ter voltado à razão. Desesperado e aos soluços, abraçou o filho. .

Cerca de meia hora depois, um tiro foi ouvido. O som vinha dos fundos da casa. Etelvina, a saber o que estava acontecendo, foi até a porta que dava acesso ao quintal. A porta estava entreaberta. Pela fresta Etelvina viu o corpo de Jair estendido no chão. Rodeando a cabeça do marido, uma poça de sangue.

Alvesfilho
Enviado por Alvesfilho em 12/06/2007
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