Diferentes pontos de vista

Eu vivi 55 anos na Terra, bem vividos. Mas qual não foi minha surpresa quando me deparei com a morte, mas ainda me sentindo viva. Fui gentilmente informada, por alguém de olhar bondoso mas severo, que somente meu corpo havia morrido, mas que o espírito é eterno e esclareceu que a lembrança da minha vida que ainda estava fresca na minha cabeça era apenas uma parte da minha verdadeira vida.

Que a experiência carnal era uma espécie de exercício prático das lições aprendidas pelo espírito, enquanto na erraticidade.

E o que vem a ser isso? Naturalmente essa era uma pergunta lógica.

- E a fase da vida do espírito em que ele não está encarnado em nenhum planeta. Enquanto ele aguarda nova encarnação para aperfeiçoamento moral, nós somos designados por esse termo.

- Quer dizer que eu vou voltar à Terra? Vou nascer de novo?

- Sim... muito provavelmente. Mas depende da sua disposição para o aprendizado... Como você avalia sua última encarnação? Você encarnou em um corpo feminino e assumiu todas as possibilidades que ele oferece?

Neste momento eu me pus a refletir. Eu era filha única de pais que me amavam e me deram todas as oportunidades mundanas. Eu tive conforto, boas escolas, amigos elegantes, vestidos bonitos, participei de festas chiques e muitas beneficentes, era freqüentadora assídua da igreja e fazia grandes donativos.

Nunca fumei nem usei drogas, bebia socialmente e cuidava da minha alimentação e fazia exercícios físicos regularmente. Minha saúde era de ferro, aliás, não entendo porque morri tão jovem.

- Você casou ou teve filhos?

- Não, claro que não... mas porque essa pergunta? Acaso isso faz diferença?

Quando jovem eu era assediada por muitos jovens, uns querendo casar, outros apenas diversão. Mas minha cabeça estava concentrada em outras coisas... Eu queria investir na minha profissão. Eu fiz Direito e almejava ser juíza. E consegui, claro, mas os estudos e depois o trabalho eram tão intensos que não havia espaço para um vida social e menos ainda marital.

Mas eu fui uma boa profissional. Sempre procurei me inteirar dos casos e julgar com propriedade. Por muitas vezes recusei suborno e propinas.

- Você teve amigos? Você ficou internada muitos dias antes de desencarnar... quantos amigos te visitaram?

Eu também não tinha tempo para amigos, claro. Mas que diferença isso fazia? Eu era uma pessoa dedicada ao meu trabalho, e meu trabalho era de abrangência social. Eu tirava ou mandava pessoas pra cadeia, isso não bastava?

- Você era feliz? Sentia falta de alguma coisa na sua vida?

- Sim... claro que eu era satisfeita com a vida que eu havia construído... E era muito auto-suficiente para sentir falta de qualquer coisa...

- você ria com que freqüência? Alguma vez já gargalhou? Alguma vez já cumprimentou uma pessoa estranha?

- Em uma cidade grande e violenta a gente se limita a conversar com conhecidos, por precaução...

Esse interrogatório estava começando a me incomodar. Eu despertei no plano espiritual, numa colônia de socorro e fui atendida por profissionais especializados. Quando me deram alta eu perguntei o que eu faria então, pois já consciente da minha situação de não viva, não fazia a menor idéia do caminho a seguir.

E eu odeio indecisão.

Tudo na minha vida era rigidamente calculado. Meu guarda-roupa era impecável. Nada na minha vida era fora do lugar ou do tempo. Eu era maníaca por controle.

Então me sugeriram fazer uma terapia de regressão com esse instrutor, pois segundo minhas fontes, ele me ajudaria a achar o caminho. Mas esse “caminho” estava dando tantas voltas que eu estava quase desistindo. O homem falava, falava, e parecia que estávamos andando em círculo.

- Você já conheceu nossa colônia? Você já andou por aí a esmo?

- não... não conheço ninguém aqui e acabei de me mudar para um quarto em um alojamento, que foi oferecido a mim devida a minha condição de recém chegada, até que eu possa me restabelecer.

- Você não tem família ou amigos aqui?

- não... meus pais ainda estão vivos na Terra...

- Não tem ninguém que interceda por você? Na terra ou acima dela?

- não... e não sei que diferença isso faz... Eu posso cuidar de mim mesma... já me inscrevi para um trabalho e estou aguardando uma colocação. Aliás, me disseram pra eu pedir a sua ajuda, pois fui juíza na terra e não sei se há uma colocação a altura aqui pra mim...

- não... acredito que não porque aqui somos julgados pela nossa própria consciência... Não temos juízes como na Terra e nossas Leis são as de Deus... A cobrança é direta...

Um silêncio embaraçoso se seguiu. O homem parecia me avaliar. Ele era alto, aparentando uns 60 anos, cabelos grisalhos e era charmoso. Mas seu olhar incomodava. Ele parecia eu quando investigava a veracidade das palavras do réu. Ele sorriu.

- Bem, senhorita, me concederia a honra de ser seu amigo? E aceitaria jantar com a minha família? Nós vivemos aqui na colônia em uma grande casa, pois nossa família é muito grande. Filhos, irmãos, tios e tias, agregados, enfim... se tem uma coisa que não existe na minha vida é controle. Cada hora eu chego lá em casa e a coisa está de um jeito... Então... o que me diz? Posso te garantir que eu sou pessoa de confiança...

Ele piscou suavemente junto com essas palavras. Eu fiquei na dúvida, pois não sei se estava gostando dele. E ele não era bobo.

- É o seguinte... tenho que atender mais dois pacientes e se você se decidir me espere no portão que seguiremos a pé para a minha casa... ou pode também e sentar na praça que eu te encontro lá...

Eu saí da sala dele quase não acreditando no desfecho da sessão. O instrutor estava me convidando para um encontro? Isso fazia parte da terapia? Meu sorriso incrédulo foi para convencer meu ego que eu não estava sendo assediada. As coisas ali eram estranhas... e desde quando o passado importava?

Eu andei a esmo por algum tempo. E meu olhar não se deteve em nenhuma paisagem, mas notei que passei por casas, jardim floridos, praças, uma escola e o que parecia uma igreja.

Afinal de contas, que lugar era aquele? Desde quando tinha escola no céu? Eu devo ter feito um cara muito estranha, porque um desconhecido passou por mim e falou comigo.

- Recém chegada? Não se preocupe... a Terra é que é uma cópia imperfeita daqui...

Eu nada disse, claro, e não sei se ele percebeu, mas eu quase virei a cara de susto. Eu fui assaltada uma vez e isso me traumatizou. Eu abominava ser abordada por estranhos, principalmente na rua. Eu apertei o passo e me vi caminhando em direção ao bairro, longe do centro. A paisagem foi se transformando lentamente e as casas pequenas e floridas foram substituídas por imensos jardins e casas grandiosas que mais parecia aquelas imensas casas dos americanos.

Não sei dizer quanto tempo se passou, mas de repente uma voz familiar fala atrás de mim.

- Que bom que seguiu o meu conselho, mas se continuar nesse rumo vai acabar saindo da cidade...

Eu não precisei me virar para saber com quem falava. Mas tentei assumir uma cara brava, pois aquilo já estava começando a passar dos limites. Quando ficamos frente a frente as palavras entalaram na minha boca. Ele era muito alto e não vestia o jaleco branco. Por sobre o peito uma camisa clara mostrando um peito cabeludo ela abertura próxima ao pescoço. Precisei desviar os olhos rapidamente para não me trair.

- Quem é você?

Essa pergunta saiu com raiva, e fiquei mais enraivecida ainda quando ele sorriu.

- Samuel... esse foi meu nome de guerra na Terra, mas ainda não me decidi se vou envergá-lo aqui. Sabe, os nomes aqui não tem tanta importância...

- E porque você não gosta do seu nome?

Outro sorriso acompanhado de um olhar perdido.

- Eu fui medico na Terra quando usei esse nome...

- Hã... e não foi um bom médico?

- não... fui um excelente médico... ganhei muito dinheiro e tinha muitos clientes... tantos que atendia até tarde da noite...

- Então qual o problema?

Ele agora parou de andar e olhou pra mim. Mas foi um olhar diferente, que eu não consegui decifrar.

- Você acabou de chegar... vai ser difícil entender, mas vamos lá... A ciência na Terra não leva em conta o espírito, e eu fui um médico que seguiu à risca a escola acadêmica. Só que eu optei pela psiquiatria, que teoricamente estuda a mente. E a mente do encarnado nada mais é que a alma, ou seja, o espírito na condição de encarnado.

Ele parou de falar e observou a reação das suas palavras em mim. O meu silêncio o encorajou.

- Então... acontece que muitas doenças do corpo são manifestações do espírito, principalmente as doenças mentais. E eu negligencie isso, de propósito. E nem posso dizer que eu não tive oportunidade de aprender, que eu segui o que os livros ensinavam... porque muitas vezes alguém tentou me mostrar isso e eu refutei... os próprios pacientes me davam sinais de que eu estava errado e eu quis manter a minha opinião...

Agora eu estava ficando confusa.

- me desculpe, mas talvez se você me der um exemplo...

- Ataque epiléptico... Esses ataques podem ser fruto de uma disfunção química do cérebro... ou de um ataque de algum inimigo desencarnado... Aprendi aqui que espíritos desencarnados exercem grande influência nos encarnados, tanto boa quanto má, e que quando se tem inimigos desencarnados, a chance de ele tentar desestabilizá-lo é muito grande. Eu não levei isso em consideração...

- E que diferença isso faz?

- Faz que muda o foco do tratamento... o que interfere na qualidade de vida do paciente. Veja bem... se é só disfunção química, o remédio resolveria o problema. Mas na maioria dos casos existia a predisposição e os ataques dos inimigos faziam o resto. Se eu soubesse disso, juntaria a medicação e na mesma receita prescreveria o passe e o estudo e aplicação do evangelho...

Nós estávamos andando devagar e conversando e sem perceber eu o seguia. Agora eu o estava vendo de outra forma. Ele estava diferente, assim ao meu lado. A mesa não mais nos separava e eu comecei a me sentir confortável ao lado dele. E quando falei minha voz saiu mais calorosa.

- E o que você vai fazer agora?

Ele olhou dentro dos meus olhos e nada disse, não de imediato. Depois sorriu.

- pensei em reencarnar e tentar a medicina, de novo, mas não sei se conseguirei resistir á influência da matéria. Por isso estou me dedicando ao estudo da mente, aqui, pois quem sabe se eu fixar bem esse aprendizado, eu renasça com uma forte intuição dele. Vamos entrar? Chegamos...

Estávamos diante de um portão branco decorado com ferro retorcido, bem à moda antiga da Terra. Um muro de trepadeiras cercava toda a casa, impedindo a visão do interior. Mas quando ele empurrou o portão eu não resisti e espiei o interior, e a visão da família dele me assustou.

Havia um imenso jardim, com flores, grama, trepadeiras e bancos e mesas de jardim. Uma mulher estava agachada em um canteiro de rosas e acenou pra nós. Crianças passaram correndo e gritaram “tio Samuel”, mas sem parar para dar a devida importância ao recém chegado. Eu olhei pro chão e estávamos sobre aqueles caminhos de pedra típicos dos jardins da Terra. Ele veio a meu socorro.

- As famílias espirituais são semelhantes as da Terra, com a diferença que o que os mantém unidos não é o laço de sangue, mas a afinidade espiritual que temos um com os outros. Minha mãe é minha mãe aqui não porque a natureza impôs essa relação, mas porque eu encontrei nela a figura materna que me conforta e me orienta, igual eu queria que fosse feito por uma mãe. Os instintos e necessidades de conforto são os mesmos... é como se eu juntasse os meus melhores amigos e formasse a minha família. Aqui a gente se fortalece, chora e ri junto. Um dá força pro outro...

- E você teve família na Terra?

- Sim... tive dois filhos gêmeos... mas não me casei com a mãe deles... Ela era minha paciente e eu não achei que pegaria bem me casar com uma doente mental... mas dei completa assistência aos garotos... Um deles é médium e eu ignorei a condição dele, entupindo ele de remédio anti alucinógeno. – ele me olhou sério – Assim como você, eu também coloquei a minha profissão e meu status social em primeiro lugar. Eu quis escrever um livro sobre manejo do paciente psiquiátrico e as atrocidades que eu coloquei nele me envergonham absurdamente, antes não tivesse feito. Algumas escolas acadêmicas usam esse livro na grade curricular dos cursos. O estrago que ele está fazendo é grande... Eu estou tentando mandar mensagens psicografadas para médiuns na Terra, mas poucos dão valor ao teor da mensagem, principalmente quando alguém se lembra do quanto eu abominava essa idéia.

Eu não soube o que dizer e me deixei levar. Ele segurou meu cotovelo e me conduziu até a mulher agachada. Ela se levantou à nossa chegada e me cumprimentou com um sorriso. Era a mãe dele, mas absurdamente mais jovem que ele. Mas quando falou sua voz saiu maternal e eu me senti acolhida.

- Seja bem vinda, minha filha. Esta casa é nossa e você sinta-se a vontade para ficar o tempo que quiser... meu filho está cuidando bem de você?

Eu sorri assustada e respondi formalmente.

- Sim... sim... obrigada pela hospitalidade...

E quando nos afastamos em direção ao interior novamente eu me deslumbrei com a decoração. A casa tinha amplas janelas e móveis muito delicados. Passamos pela sala e fomos até uma sala confortável, que tinha uma grande tela na parede.

- Me desculpe, mas tenho por hábito ver meus filhos todo dia quando chego do trabalho. Só que não são imagens em tempo real, porque não tenho permissão para isso... no que diz respeito a eles, eu mais atrapalho que ajudo, pois a vibração irregular que eu transmito a eles os prejudica... Minha consciência torturada me impede de mandar bons fluidos pra eles, então eu me contento em observar o que eu perdi.

Ele puxou um painel da parede e apertou alguns botões, depois se sentou e me convidou a estar com ele. Diante da minha cara espantada ele sorriu se desculpando. E começou a falar da vida dele com certa tristeza.

- A mãe dos meus filhos se casou alguns anos depois que teve os meninos. Ela mora até hoje com o pai e os meus filhos, e agora com o marido. Ele é um homem bom e cuida dos meus filhos melhor que se fossem dele. Eles moram em uma cidade no interior e o rapaz é caminhoneiro. Ela mora em uma grande casa e aluga quartos... E também fundou um centro espírita no barracão no fundo da casa. Ao invés de alugar o barracão para aumentar a renda da família ela prefere rezar nele... Ela viveu muito tempo só com a pensão que eu pagava, mas agora o marido ajuda nas despesas da casa e a pensão rende algum dinheiro. – ele parou e ficou pensativo – hoje ela está mais velha e eles construíram uma bonita pousada, meus meninos cresceram e se casaram, mas moram tudo perto dela. Mas eu acompanho a história deles com muita curiosidade porque essa história tinha tudo pra não dar certo, sabe? Ela, doida, o cara, com um mundo de possibilidades pela frente. O que fez ele se interessar por ela é que eu não entendo...

- mas doida, como?

- Ele via, não, vê, cenas do passado e do futuro que se misturam com o presente e que fazem a gente diagnosticá-la como louca. Hoje e daqui eu entendo que é o espírito dela que tem essa habilidade “elástica”, vamos dizer assim, de ter acesso aos acontecimentos... mas lá na Terra, com os recursos precários dos exames diagnósticos, seria impossível chegar a esse diagnóstico... não para um especialista como eu... Mas um clinico geral conseguiu acessá-la e ela se equilibrou... Ficou meses aos meus cuidados e eu não cheguei nem perto da condição dela... Aliás, a única coisa que eu consegui foi me apaixonar por ela, para depois largá-la a própria sorte... Mas ela está bem e muito melhor que eu, e eu fico feliz por ela... Principalmente que vendo-a sei que ela não seria feliz comigo... Ela é muito divertida e eu sou muito carrancudo... ela sente prazer em viver e eu sempre achei que viver era só uma obrigação.

Ele falava com um ar melancólico. Depois olhou pra mim e continuou.

- nós, espíritos, galgamos um escala evolutiva com o propósito de chegarmos à perfeição. Por que ser perfeito? Porque é assim que atingiremos nossa capacidade plena e principalmente ficaremos totalmente isentos da influência da matéria. Seremos então os emissários de Deus, com a tarefa de ajudar o progresso dos mundos e dos espíritos. Não sentiremos mais dor, nem necessidades... E é através das encarnações sucessivas na matéria que nos despojaremos dos nossos defeitos e adquiriremos virtudes. A mãe dos meus filhos já esta na fase da aquisição dos sentimentos, eu estacionei no desfiladeiro da sucessão de erros... Tive filhos e não os valorizei... tive estudo e não direcionei minha mente com proveito para a vida espiritual, deixei o ouro ofuscar a minha mente... tive oportunidade de constituir família e a refutei... Eu não te falei, mas muitas mulheres honestas quiseram se casar comigo e eu fechei os olhos para elas... Eu encarnei com o propósito nobre de alavancar a ciência espiritual e só fiz me atolar em erros. Deixei a vaidade me dominar e fui engolido pelas conseqüências...

- E agora?

Ele me olhou irônico e eu me encolhi. De repente percebi que nossas histórias eram muito parecidas e criei coragem.

- quer dizer... mas que diferença isso faz agora? Se já passou a oportunidade... se agora eles estão bem... e você está aqui... nós estamos aqui... Eu também me dediquei a o que eu achava importante e dei melhor de mim... não vejo onde há erro nisso... Nós fomos pessoas que assumimos compromissos com a nação... eu com o cumprimento da Lei e você com a medicina... onde há erro?

Ele me lançou um olhar pesaroso.

- E qual é o objetivo da medicina e do cumprimento das Leis? Aqui temos uma lei que resume tudo... todas as outras... “Faça ao próximo o que gostaria que lhe fosse feito” e “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Já ouviu falar da lição de Jesus sobre a porta larga e a porta estreita? E a célebre frase dele: “deixai vir a Mim as criancinhas...”? A mãe dos meus filhos já aprendeu todas essa lições... Tanto o bem quanto o mal têm poder contagioso... E ela contamina todos que se achegam a ela... Vamos ver?

Ele se ajeitou no sofá e me convidou para acompanhá-lo.

- lamento, mas não tenho pipoca e guaraná para te oferecer...

Depois sorriu, mas subitamente ficou sério.

- Eu sei que você deve estar achando tudo isso muito estranho, mas a vida da mãe dos meus filhos é um aprendizado intenso das lições do evangelho.. E você não deve saber, mas o evangelho é o livro que nos ensina o caminho da evolução moral. Todos os ensinamentos de Jesus são ali comentados e adaptados à nossa época, porque como você sabe Jesus viveu na Terra em uma época em que o povo era muito rude. Hoje muitas orientações dele não podem ser levadas ao pé da letra, e o evangelho faz essas adaptações, vamos dizer assim.

As imagens começaram a passar na tela e se no começo eu achei que iria me entediar, logo percebi que a história me envolveu e eu não queria me afastar dali. Os filhos dele eram rapazes adoráveis, gêmeos idênticos e que tinham um carinho e respeito pela mão invejáveis. A própria mãe também demonstrava grande carinho e respeito pelo seu pai e a tela mostrou ela correndo à porta para receber um homem também jovem, mas de aspecto muito cansado.

Essa família se reuniu em torno da mesa para jantar, mas antes fizeram uma prece em agradecimento. Durante a refeição a conversa corria suave, com as crianças relatando fatos pitorescos do dia deles, a mãe e o marido se tocando carinhosamente. Depois foram para a sala, onde a moça se aconchegou nos braços do marido enquanto o avô brincava com os meninos.

Algum tempo depois todos se recolheram, a mãe foi até o quarto dar boa noite aos garotos. E quando ela foi para seu próprio quarto a tela se apagou.

- Esse é um lar que tem o evangelho na cabeceira da cama. Eles vivem a lição de Jesus... Ali ninguém fala palavrão, não brigam, não há mentiras e eles fazem o bem o máximo que podem. Ajudam algum vizinho, dão de comer a quem bate à porta, hospedam em troca de serviço... Enfim... vivem quase sem sofrer a influência da matéria... vivem mais pelo espírito... Na minha programação reencarnatória eles seriam a minha ajuda para seguir o mesmo caminho... porque eles são espíritos muito mais evoluídos que eu...

Em seguida ele me convidou para conhecer o resto da família, o que foi feito em grande estilo. O “jantar” a que ele se referia era apenas um caldo servido em uma mesa extensa, mas fui informada que aquele era um ritual seguido pela família a muitos anos.

Ali os integrantes falavam aos pares, depois compartilhavam alguma noticia importante com a família. Mas achei os comentários muito interessantes. Alguém iria reencarnar; outro voltaria em breve da Terra; alguém falou da sua visita a outro planeta; tal projeto iria ser desenvolvido na colônia; a equipe de resgate estava precisando de trabalhadores; uma nova turma de estudos espíritas iria iniciar em breve...

Assim como a família da Terra, ninguém falava palavras para denegrir ou ferir, não existia fofoca nem maledicências, as pessoas falavam baixo e sabiam ouvir. Depois descobri que Samuel fora acolhido recentemente, depois de passar muito tempo se desintoxicando no umbral. Quando eu questionei o que vinha a ser isso, alguém sorriu irônico.

- É um passeio que todos invariavelmente fazemos quando voltamos das nossas intermináveis encarnações na Terra...

Vários protestos de “eu não” “Deus me livre” e “nunca mais” soaram ao mesmo tempo. Descobri que o Umbral era um local próximo à Terra que servia para nos despojarmos de tudo o que não tinha utilidade na colônia. No caso de Samuel descobri que ele ficou lá porque se sentia revoltado por não ter terminado seus projetos na Terra. Ele queria escrever muitos livros antes de desencarnar, mas a morte o colheu cedo demais. Ele sorriu pra mim.

- Viu como Deus é misericordioso? Se com um livro só eu já estou perdendo os cabelos, imagina se eu escrevesse todos que eu tinha em mente?

Naquela noite quando eu me deitei para descansar só uma palavra descrevia com êxito meu estado de espírito: encantada. Eu estava deslumbrada com as possibilidades da minha vida ali. Não pude deixar de comparar a vida ali com a minha maior paixão: o Direito.

Eu sempre gostei do Direito pelas possibilidades de interpretação da Lei que nós tínhamos. Mas ali era muito melhor... As leis de Deus são muito mais amplas e muito mais simples.

Na Terra o homem é julgado pelos seus atos, e se houver testemunha ou réu confesso.

Aqui, pelo pensamento...

Lá, a pena mais severa para o homem que descumpre a lei é ele ser detido e isolado da vida em sociedade.

Aqui ele fica detido no vazio, onde não há lei e ele fica cara a cara com seus desafetos...

Na Terra um advogado lê suas faltas na corte.

Aqui suas faltas ficam gravadas em sua própria consciência...

Na Terra os atentados contra outro ser humano são pagos com a prisão do infrator.

Aqui as pessoas que são prejudicadas por nossos atos ou palavras devem ser ressarcidas de alguma forma, muito provavelmente pelo próprio infrator em uma nova encarnação.

Na terra os atos que ferem o próprio infrator nada representam.

Aqui eles são cobrados e é considerada falta grave.

Lucilia Martins
Enviado por Lucilia Martins em 25/05/2015
Reeditado em 04/10/2015
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