"Talvez amanhã"

Acordou encolhido no lado esquerdo da cama. Nunca se acostumara à velha novidade de tê-la toda para si. De fato, o leito é demasiado grande para um. O cheiro dela ainda impregna o travesseiro.

Levantou-se e dirigiu-se ao banho, como sempre o fizera. Duas voltas na torneira da esquerda e uma na direita. Água mais quente que fria. Só um pouco. Mistura perfeita. Aprendeu repetindo o ritual ao longo desses setenta longos anos.

Armário: o velho terno. Gravata. Calça. Sapato.

Sentou-se na cama. O cansaço surgiu. Seu coração safenado não agüenta mais o esforço mesmo de viver. Minha hora é certa, diz. Só quando o vir novamente. Só quando o vir... Olha a parede. Quantos retratos do seu filho. Seu maior orgulho de toda uma vida. Um grande homem, diz a si mesmo. Como muitos dos jovens que foram à guerra. Há quinze anos em batalha. Grande homem, grande...

Bruscamente interrompeu seu pensamento e pôs-se a terminar de vestir-se.

Gaveta: Relógio. Aliança. Carteira.

Teria de estar impecável para recebê-lo de volta. Era tudo o que tinha. Sua mulher morreu, meses após a partida do jovem. Talvez não tenha agüentado a solidão, afinal tinha os nervos fracos, desde moça. O filho não viera ao enterro. Escolhera sofrer e lutar pela Nação, mesmo sendo sua última oportunidade de ver a mãe. “Grande homem”. Não cansava de repetir.

Bengala. Chapéu. Chaves.

Abriu a porta. Respirou fundo mais uma vez, e pôs-se a andar com seus passos frágeis e pernas miúdas. É uma distância razoável até o ponto do ônibus que teria de pegar para chegar ao quartel.

Desceu do ônibus e dirigiu-se à entrada. Os guardas não lhe fizeram objeção. Não era importante a apresentação dos documentos de um velho, em plena guerra. Alem do mais, seu filho havia feito pela Nação muito mais do que os que permaneceram aqui.

Dirigiu-se ao gabinete de pessoal. Bateu três vezes, rapidamente, e entrou. Estavam dois soldados rasos, um ao lado do outro. Frente a eles, um terceiro, sentado, mas de uniforme diferente, inegavelmente de hierarquia superior. Esperou que a conversa deles terminasse. Os soldados rasos saíram, então se sentou na cadeira frente à mesa do terceiro.

- Bom dia, senhor. Vim receber meu filho.

- Claramente, senhor. Sente-se. Ele certamente está a chegar. Tome um café, não temos horário certo.

- Certo, sargento. Sargento, não? Pelo menos é como ouvi os outros lhe chamando. – O sargento respondeu afirmativamente, balançando a cabeça. – O senhor já deve ter ouvido falar do meu filho. Lutou bravamente, ganhou duas Medalhas de Honra. Mas acredito que já deu o que tinha de dar ao País. Finalmente está voltando. Finalmente...

- Sim, um bravo soldado. Espere aí, vou pedir informações.

O sargento saiu, permaneceu fora durante alguns minutos e voltou, sentando-se novamente em sua cadeira.

- Tenho uma má notícia. Um telegrama para o senhor – estendendo a mão.

Foi rápido ao pegar a mensagem. Abriu-a, e leu rapidamente. Sim, está certo, disse, com lágrimas nos olhos. Ainda não é hoje.

Decepcionado, guardou lentamente a mensagem no bolso. Levantou-se, agradeceu, e saiu. “Talvez amanhã”.

Entrou na sala novamente um dos soldados rasos.

- Sargento, o que aquele senhor fazia novamente aqui?

- Apenas um pobre diabo. O filho alistou-se no início da guerra. E dois meses depois, morreu. Explodiu uma granada na mão. A mãe, quando soube, se matou. Já ele, acho que teve um destino pior. Nunca aceitou a morte do filho. O rapaz virou um sonho, cheio de bravura e medalhas. Mesmo a guerra tendo acabado há dez anos, todos os dias vem aqui, achando que o filho chegou. O último que ocupou este cargo instruiu-me a continuar a loucura do velho. É tudo o que lhe resta.

- E o que havia no papel?

- No papel não havia nada escrito. Nada, senão ilusão.